"Uma grande família", de Fernando Campos Maia. Mais obras do artista podem ser encontradas no Facebook: Atelier Virtual - Fernando Campos Maia ou no Instagram: @fernandocamposmaia".
2020. Final do Verão. Minha mãe chegou para passar 15 dias. Ficar comigo. E curtir a neta. Não voltou mais. Ficou. Para o Natal? Quem sabe? Ficamos as três. Avó. Mãe. Filha. Uma idosa. Uma adulta. Uma bebê. As babás dispensamos. Isolamento. Quarentena. Tem um vírus. Ninguém sai. E na rua não se tocam. Em casa trabalho intenso. Remoto. Criança Presente. Criança dá trabalho. E não trabalha. Em três dias. Adoecemos. As três. De cansaço. Tudo lá fora é distância. Dentro estamos cada vez mais perto. Avó. Mãe. Filha. Talvez nunca mais teria oportunidade dessa convivência. Qual foi a ultima vez que dei banho na minha filha? Que a fiz dormir? Que a alimentei? Que brinquei com ela? Que plantamos juntas? Que aguamos as plantinhas? Que minha mãe me preparou e serviu um chá? Em seis meses ela já fez seis coletes de tricô e dois cachecol. Me ensinou fazer manteiga com a nata do leite gordo que buscamos na fazenda. Eu via minha vó fazendo, ela me conta enquanto não para de mexer a colher na caneca. Seu joelho dói. A coluna dói. O pulso dói. Compramos uma poltrona. A saudade dos outros filhos dói. Ela chora. O que houve ? Ele não poderá vir. Sussurra. Testou positivo. Tá tudo bem? Acho que sim. Precisamos de ajuda. Ela de descanso. Saio então com minha filha para andar de biciqueta, diz a pequena. Lemos livros. Brincamos na grama do nosso quintal. O maior do mundo. Plantamos. Fazemos fogueira. Para esperar a lua. As estrelinhas. No meio. O trabalho. Uma live. Muitas lives. Caixinhas de fósforo. Ela abre e fecha. Rasga e desmonta. Espalha os palitos. Panos de prato pelo chão. É lindo, né? Os panos de prato. Comenta minha filha enquanto os estende esticadinhos pela casa. Canta Nós Gatos. Quero ver os gatinhos no muro. Ela pede. Ouvir o Tom Jobinho. Música do avião. Jogar milho pras galinhas. Pegar mexerica e abacate. Vamos ao parquinho abandonado. Lá equipamentos de idosos e crianças ainda se misturam. Abacatero, pede ela enquanto toma banho. Que passei a tomar junto. Quero jogar agua na mamãe. Ela pede. Já vou! Ela mesma responde. Imitando meu pedido de espera. Enquanto lá fora as intimidades se tornam uma ameaça. A nossa nos fortalece. Aqui dentro mulheres cuidam. De mulheres e de meninas. Lá fora muitas mulheres em outros dentros são prisioneiras de dores. Na alma. Nos corpos. Precisam de cuidado. Proteção. Para quem sabe um dia. A intimidade volte a ser um lugar de amor. Ensino minha filha a beijar os botãozinhos das violetas e orquídeas, para que venham a florescer. Botãozinhos que não param de crescer em uma primavera que parece acontecer dentro de minha casa em meio a cem mil invernos em outras casas pelo Brasil. Muitas lives. Que se foram. Que alegria tervocêpertinho. Voltou a dormir comigo. Bemjuntinhas. Digo pra ela. Bemjuntinhas. Ela repete. Vai ficar mal acostumada. Vão dizer os pediatras. Tenho que aproveitar. O lado bom de não ter mais marido. O marido. Que também é o pai. Ficou. Isolado. No passado. Porque não passou. De fase. Mas isso é mágoa. Do passado. Que também não passou. E repassa pelo peito isolado dos contatos que ficaram lá fora. Talvez por isso tenha tido recentemente dez dias de febre. No corpo? Nada. Febre no coração. Mas que passou. De repente. Como de repente chegou. Como de repente também tudo mudou. Aqui em casa. Aqui no mundo. Como de repente também daqui a pouco, e até com saudade, tudo isso será registro num site perdido, de uma rotina que ninguém mais se lembrará. Tomara. Será? Ou essa folha vira um rascunho onde minha filha fará um rabisco, onde anoto a lista do mercado. Os pontos da reunião de trabalho. E nem percebi. É verão de novo. Agradeço. Tomara. Minha filha enfim alcança os pés no triciclo. Consegue pedalar sozinha. Imagino.
[Fernanda Omelczuk Walter. Professora do Departamento de Ciências da Educação (DECED) da UFSJ. Trabalhando em casa com a mãe de 67 e a filha de 2 anos. 14 de agosto de 2020].
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