Em uma reunião virtual dias atrás, o grupo comentava sobre a dificuldade em escrever as coisas em computadores e celulares, sobre como preferiam o papel, mas como era trabalhoso passar todas as anotações para a tela ao fim das reuniões. Eu, pelo contrário, já nem me lembro da sensação de escrever no papel. Assusto quando me dou conta.
Termino a reunião e busco afobada um bloco, não o bloco de notas do celular, o caderninho esquecido mesmo, só pra testar como anda a letra. Garrancho, não me surpreende, mas ainda acho que colocar a caneta no papel não é algo que se desaprende. Se bem que todos dizem que não há como desaprender a andar de bicicleta e eu desaprendi e reaprendi algumas vezes já.
Resolvo sair em busca dos cadernos de aulas esquecidos nas gavetas. Não vou tão a fundo a ponto de buscar os da época da escola, já que garanto que me assustaria com as expressões matemáticas e fórmulas químicas. Me reservo aos cadernos da faculdade e de mais fácil acesso. Esses na verdade nunca foram muito preenchidos, ou eram apenas no primeiro mês de aula, depois se misturavam aos rabiscos e anotações no celular.
Um hábito comum, porém que sempre persistia, é o de ocupar as páginas finais do caderno. Elas carregam as marcas da tinta da ponta da caneta, sempre prestes a estourar. Carregam listas de tarefas belissimamente planejadas e jamais terminadas. Carregam trechos de música. Carregam sugestões de leitura nunca lidas. Carregam conversas com os amigos antes que migrássemos para os grupos de WhatsApp. Carregam comprovantes das minhas inabilidades em desenhar. E carregam devaneios.
Com o passar dos anos, fui tendo cada vez mais dificuldade em manter a mente em um só lugar, focada, dedicada. Ela é ansiosa e se perde entre passado e futuro. Se tenta ficar no presente, rapidamente se entremeia pelos meus músculos e bota as pernas para sacudirem nervosamente. Às vezes cansa, mas me perder não é algo que não goste exatamente. Quando isso acontecia entre as aulas, as páginas finais do caderno ganhavam frases soltas, aflições de jovem adulta, e frustrações de quem nem sempre concordava com o que saía da boca do senhor doutor frente ao slide monótono.
Fuçando o fim de um dos cadernos, me perdi em uma anotação específica. Seria de 2018? Talvez. Foi de quando escapei da sala para um café. Geralmente bastante horrível e amargo, mas ninguém escapava de fato pelo café. Se escapava por causa da companhia até a lanchonete, pelo frio dos ventos no alto do morro, ou pelo tédio e vontade de fumar. Não sei qual foi a motivação para o caso em questão. Mas o relato é sobre o dia que conheci Vinícius. Os escritos diziam assim:
“Vinícius é um adolescente, vende trufas no campus. Mora no bairro acima. Quer saber o que acontece aqui. Fica surpreso em saber que posso sair da sala. Adora saber que falo inglês e espanhol e que ele também pode estar aqui daqui a alguns anos. Matemática e inglês é difícil, tem que ajudar em casa. Abre o caderno brochura, sento e ajudo com a tarefa enquanto como trufa de chocolate. Olha para o prédio novo, o pavilhão, comenta que o prédio deve ser caro, e sim, concordo que parece um hospital. O prédio que eu odeio de repente fica mais bonito com a ideia de ver Vinícius, menino preto, do bairro de cima, sentado lá. Torço por ele, espero que volte mais vezes para conversas sobre sonhos. Acreditar que as crianças sonhem tudo o que querem sonhar. Agir para que ocupem qualquer lugar que querem ocupar.”
Não me lembro de ter visto Vinícius novamente. Talvez um aceno distante. Talvez de relance vendendo mais trufas enquanto corria apressada de novo pra uma aula. Já devem ter se passado uns três anos, será que tá terminando o Ensino Médio? Como a família tá sobrevivendo na pandemia? Será que passou de ano no inglês? Será que devia ter anotado o telefone ou perdido mais algumas aulas? O que ficou pelos cantos do caderno e da cidade? Será que com as minhas “extensões” e “práticas com a comunidade” cheguei até o bairro de cima? E por que suspeito que a resposta seja “não” quando me lembro da surpresa nos olhos de Vinicius ao descobrir em uma conversa no banquinho enquanto vendia trufas, que ali era público, que ali era dele também?
Eu moro no bairro de baixo, professora de inglês, e nativa da cidade, às vezes estranho chamar minha família e meus vizinhos de comunidade. E eu ali na fronteira, acadêmica e da comunidade, na academia que separa a passagem entre as comunidades, o de cima que tá em baixo, e o de baixo que tá em cima. E eu ali na cegueira, indo pro bairro no outro lado da cidade e pro país do outro lado do continente, sem me estender ao menino que passa no corredor.
Me estendo muito, me estendo pouco. Um elástico que se alarga, muda de forma, mas que ainda volta pra origem. Casa. Raiz. Será que dá pra reaprender contato?
[Núbia Rodrigues. Estudante de psicologia da UFSJ, integrante do Estágio Extensionista no OBESC. 27 de setembro de 2021]Diários da Educação: Série Extensão Universitária.
Fotografia de João Lino, estudante de medicina.
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