Era uma terça-feira. Branca é enfermeira da saúde da família, mas era dia de ficar na Sala de Vacina. Branca sempre se deu muito bem com vacinas. Carregando uma caixa térmica enorme, foi ela quem passou pelas unidades de saúde vacinando os funcionários em janeiro, quando as primeiras pessoas começaram a ser vacinadas no Brasil.
Branca é uma pessoa segura, que gosta e se dedica à enfermagem. Mas aquele dia foi um pouco diferente: logo cedo ela percebeu e se admirou com a hostilidade dos idosos a serem vacinados. Reclamavam por uma suposta demora em preparar o material, mas ficavam desconfiados quando ela fazia mais rápido. Conferiam se o líquido estava na seringa, conferiam se o líquido deixou de estar na seringa. Pediam para filmar. Eram grosseiros na fila, durante o preenchimento do cartão e ao tomar a vacina. Familiares ficavam presentes ao longo do processo para participar da inspeção e manejar a câmera do celular. É a sociedade do espetáculo na pandemia.
Foi Naquele dia Branca conheceu a sensação de ser vigiada, e por isso sentiu-se assustada e agredida. Insegura, passou a agir de forma desajeitada, deixou uma agulha cair no chão enquanto era filmada: “e agora? E se postarem alegando que não sei trabalhar?” Há colegas que trabalham com vacina que estão sendo investigados administrativamente. Há um espírito de paranóia no ar, e Branca se dá conta disso. O horário para aplicar as vacinas é bem rígido, já que não se pode correr o risco de perder doses. O relógio também passa a ser objeto de paranóia.
Todos estão a espreita: população, coordenadores, gestores, vereadores, ministério público, colegas, imprensa. Branca, de jaleco branco, passa a sentir náuseas, o dia demora muito a passar.
Finalmente em casa. À noite ela sonha que a polícia bate à porta e a leva para averiguação. No sonho ela sente-se criminosa, culpada. Não quer mais voltar ao trabalho.
Branca é uma trabalhadora da saúde como muitas outras: enfermeiras, médicas, psicólogas, técnicas em enfermagem; mulheres que não deixaram de trabalhar presencialmente em nenhum dia depois do início da pandemia, que não tiveram aumento de salário sequer para corrigir a inflação, que estão com direitos de quinquênio e férias prêmio congelados com a alegação de que o país está em estado de emergência. Mulheres que enfrentam o vírus diretamente (enquanto outros podem enfrentá-lo por intermédio de telas). Mulheres que ao chegarem em casa enfrentam a segunda jornada, essa sim, doméstica. Mulheres que agora são filmadas, vigiadas e expostas, como criminosas.
O texto é oriundo de narrativas feitas por Flávia Mourão à Carla Cristina Rodrigues. Ambas são trabalhadoras do SUS em um pequeno município de MG. [28 de abril de 2021]
Fotografia do arquivo pessoal da autora.
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