Já digo de início que Renato é uma pessoa muito pragmática. E por isso, a pandemia não faz sentido aos seus olhos tão racionais. Suas falas refletem o que nós, do “lado ‘científico’ da força”, estamos pensando desde o começo dessa loucura: por que diabos o brasileiro não faz o que deve? Renato, como a maioria, se viu obrigado a mudar completamente sua rotina: como blocos num jogo de Tetris, os elementos de sua vida tiveram que se movimentar, adequar e ceder espaço para outros. Talvez esses outros blocos fossem cheios de algo ainda hoje meio disforme, desconhecido. E tão disformes que se desalinham e se misturam na (in)consciência do dia a dia. Seus limites são borrados e entram em qualquer brecha de desatenção, como no caminho ao trabalho:
Tranco a porta da minha casa muito menos, abro ainda mais as janelas, ando menos (ou mais?) pelos cômodos e me preocupo além do que essas quatro paredes podem guardar. Se os noticiários não alertassem tanto sobre os números, eu teria facilmente perdido a noção dos limites do ontem e do amanhã. Falando nisso, amanhã já é meu plantão na casa da mãe. Tenho que ir ao mercado, fazer minha mala, comprar as pilhas pro aparelho dela e mandar mensagem pro médico perguntando daquela coisa. É, Renato, melhor você se apressar, ainda tem muito pepino pra resolver lá no galpão. O trânsito hoje está péssimo, mas tudo bem, pelo menos tenho meu carro e lugares aonde ir. Acho melhor virar a direita, acho que assim consigo cortar o engarrafamento. Aqui nessa praça foi onde eu vi o Júlio. Meu Deus, como que ele veio parar nessa situação. Nós éramos amigos de colegial e hoje em dia ele vem me pedir comida no sinal. Acho que hoje ele não está por aqui. Será que ele está bem? Com fome? Vivo? Que uma boa pessoa tenha a decência de lhe dar um pouco de álcool em gel. Vou até deixar essa máscara no porta luvas, se eu o encontrar de novo, vou dar pra ele. Da última vez a dele mal lhe cobria o nariz.
Cansei desse silêncio. Vale a pena ouvir o rádio? Viro à esquerda. O sol hoje está forte. Não quero ouvir mais notícias de morte. Será que os meninos estão bem? Jimmy Hendrix ou Metallica? Jimmy, óbvio. Não sei por que ainda paro pra decidir. Mais tarde vou ligar pros meninos. Eu lembro de escutar essa música enquanto o pai tomava sol lá na varanda. Nossa, eu cresci naquela casa mas hoje ela parece tão diferente... Já, já eu entro na terceira idade, e agora entendo mais do que nunca como é fácil se perder. Foi só o pai parar de escrever que ele parou de pensar. Eu tô cansado, mas não quero ficar parado. Não quero dar trabalho pros meninos, é injusto. Logo agora que eles tão construindo a vida deles.
Amanhã fazem 8 meses. Não vou comentar com a mãe, prefiro deixar ela no mundo dela. Coitada. Nem o Corona derrubou ela mas a idade a deixa assim. Mas tudo bem, são mais de 90 anos. Ela cuidou da gente por 90 anos, o mínimo que eu faço é ficar com ela agora. Hoje eu levo café ou chá pro plantão? É melhor o café pra ficar acordado de noite ou chá pra dormir uns minutos que sejam? Acho que ali tem uma vaga pra estacionar. Vou pegar chá e café. Já sou adulto, ninguém pode me impedir. Tenho que prestar atenção nos biscoitos, o Dr. Augusto me mandou tomar cuidado com o coração. Vendo o tempo aberto assim me dá saudade de sair pra correr. Belos tempos quando batia 9 km. Eu sabia que o Corona era perigoso, mas aquelas semanas foram horrendas. Respiro fundo. Que bom que estou vivo, e a mãe também. Amanhã fazem 8 meses. Como passa rápido. Será que eu ainda estou imune? De qualquer jeito é melhor evitar aquele casal sem máscara. Ignorantes, se eles soubessem…
[Narrativa construída em colaboração entre Ana Rita e Renato. Renato (nome fictício), 59, é engenheiro e cuida de sua mãe acamada. Ana Rita é estudante de psicologia na UFSJ. Narrativa colaborativa desenvolvida na disciplina Narrativas e Cuidado em tempo de isolamento durante o ERE 2. Texto de 20 de março de 2021].
Fotografia: Luana Kaori Saito
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