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Nesc

Barro: plasticidade, tempos e temperaturas


Há duas espécies de barro: barro cor-de-rosa pálido e barro vermelho-escuro. Barro que desde tempos imemoriais os homens aprenderam a modelar numa medida humana. Formas que através dos séculos vêm de mão em mão. A loja onde estou é como uma loja de Creta. Olho as ânforas de barro pálido poisadas em minha frente no chão. Talvez a arte deste tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor. Talvez a arte deste tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar.*


Tem algo de mágico na plasticidade e nos usos do barro. Material esse que serviu para sustentar fisicamente o chão e as paredes da casa onde a mãe da minha mãe pariu, sozinha, sete dos seus onze filhos. Matéria-prima que também foi a base de um diálogo interdisciplinar e pluridisciplinar por mais de dois anos durante a minha experiência em um ateliê de cerâmica e arteterapia. Cheguei no ateliê como estudante de psicologia. Depois de dois anos no ateliê, não sabia se era só futura psicóloga, mas também futura ceramista e arteterapeuta. Prestes a colar grau em psicologia, sinto como a participação do projeto reverbera nas minhas futuras escolhas.

Os caminhos a serem seguidos em minha vida profissional e pessoal certamente são moldados assim como o barro precisa para poder ser modelado: tem o tempo de preparar a matéria para obter plasticidade, o tempo de sujar as mãos procurando dar forma ao barro, tempo de lidar com as frustrações das modelagens que não saem como o esperado, o tempo das tentativas até o projeto artístico estar pronto para o próximo tempo que é o tempo de guardar cuidadosamente o objeto modelado para que ele seque e atinja o ponto de osso. Ponto de osso é o momento mais frágil da matéria.

Para chegar ao ponto de osso sem riscos do objeto modelado quebrar é necessário que este esteja em um lugar com temperatura apropriada para a secagem. Não muito quente, para não secar rápido demais, nem muito frio, para a secagem não ser demasiadamente demorada. Então o barro, ora tão plástico e moldável, entra em uma consistência rígida e ao mesmo tempo frágil, mas pronta para a queima. A queima é o momento em que o artista/ceramista só tem controle sobre a temperatura do forno, o que acontece dentro dele é um misto de expectativas e imprevistos. E o produto a ser retirado demanda no mínimo dois tempos: tempo da queima em si; e tempo do objeto e do forno esfriarem. Do mesmo jeito que usamos um pano de prato para retirada do bolo de um forno, o forno da queima de cerâmica exige seus cuidados para evitar acidentes.[1] [2] [3] [4]


O parágrafo seguinte se recusou a ser apenas legenda da foto que ilustra a narrativa

Na procura de imagens para ilustrar a narrativa, viro o rosto um instante e a memória de uma das oficinas está na parede ao lado da minha mesa de trabalho. A placa de cerâmica foi feita por uma residente da instituição, que fez uma marcação de sua mão na argila ainda molhada sob a técnica de marmorização. A técnica consiste em misturar argila de cores diferentes, no caso da peça: branca e terracota, com intenção que a mescla de cores lembre os efeitos do mármore. A técnica descrita remonta aos tempos de artista do meu avô Affonso, além de sua arte na cozinha e com as plantas, Vô Affonso trabalhava com placas brutas de mármore.


[Lidiane Campos Villanacci, graduanda em psicologia pela UFSJ, bolsista de extensão entre 2018 e 2020 no Ateliê de Cerâmica da Apadeq sob a supervisão dos professores Zandra Coelho Miranda e Kleber José da Silva do Departamento de Artes Aplicadas da UFSJ e estagiária no mesmo projeto sob orientação do professor Walter de Melo do departamento de psicologia da UFSJ. Narrativa produzida durante o primeiro semestre remoto de 2021 no estágio extensionista do Obesc-Nesc sob a orientação da professora Cássia Beatriz Batista e do professor Alfredo Nava Sanchez].


*O texto de Sophia de Mello Breyner Andressen Arte Poética I pode ser encontrado no site https://www.escritas.org/pt/t/50667/arte-poetica-i


Imagem: Placa decorativa de cerâmica com efeito marmorizado, feita no Ateliê de Cerâmica da Apadeq. A peça foi modelada às cegas em uma atividade por uma residente em tratamento no ano de 2020. Registro feito em 24 de junho de 2021 pela autora.


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