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Dois momentos de uma pandemia


Fotografia por Giovana Scareli


22.04.2020 - Dias estranhos

Os dias estão muito estranhos por aqui. Embora, todos os dias, em vários momentos do dia, eu fale sobre os acontecimentos atuais, neste momento de distanciamento social provocado pelo COVID-19, tenho pouca vontade de escrever. Penso, leio, volto a refletir sobre muitas coisas, ouço áudios, vejo poucos vídeos, assisto telejornais, acompanho as notícias de alguma forma: TV, podcast, textos, mensagens pelo WhatsApp, redes sociais... Tudo isso me cansa. Fico esgotada com este barulho de tantas notícias e pessoas a falar, opinar, criticar, informar o tempo todo. Todos os meios de comunicação, notícias, críticas, vídeos, lives, tudo isso me cansa. É excessivo e me causa uma imobilidade. Não tenho vontade de ser mais uma a escrever e a falar sobre isso. Oscilo entre tantas emoções e pensamentos, tristeza-alegria, esperança-desesperança, raiva-paz, nada... tristeza de novo...

Uma sensação tem me cutucado, penso sobre ela e o que percebo, neste momento (o diário é sempre uma escrita do momento) é que estou gostando, cada vez mais, de ficar “isolada”. Às vezes, fico até preocupada de estar gostando de estar assim, de certa forma, distanciada de tudo que vinha fazendo. De certa forma, porque tenho um celular, com redes sociais, que não consigo fazer calar. Não consigo deixar de olhar, muito menos de cancelar minhas contas... Não consigo ver as mensagens e não responde-las. Fiquei pensando se essa pandemia tivesse acontecido há 30 anos atrás... seria bem diferente. Talvez, eu quisesse um isolamento mais radical ainda, sem celulares. Talvez, não... Talvez, devesse fazer um exercício: olhar para o celular em alguns momentos do dia. Não estar disponível, online, o tempo todo.

Não tenho sentido falta de ir à universidade, nem de ir a lugar algum. É estranho sentir isso. Eu não saberia responder nenhuma questão que o Bruno Latour nos faz, no texto “Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise”. Fico admirada de tantas pessoas conseguirem escrever, fazer vídeos, ter uma opinião, fazer críticas e participar de lives. Para mim, é tudo tão nebuloso.

Também oscilo entre querer produzir, para aproveitar o tempo e fazer tudo aquilo que está por fazer e achar que agora esta não deva ser uma preocupação. Minha rotina neste período de distanciamento mudou pouco, não sei quanto. Continuo trabalhando todos os dias, estou retomando alguns artigos que estavam engavetados/arquivados; elaboro rascunhos de projetos de iniciação científica; estou começando a organizar meu livro, com os resultados do pós-doutorado; leio os textos dos meus orientandos, quando eles me enviam; respondo e-mails, muitos, a caixa está sempre cheia; dou pareceres de artigos para revistas, para eventos... sempre há muito trabalho! É impressionante!

Leio todos os dias, um pouco, pelo menos. O quê? Literatura... quase sempre literatura. Vejo filmes todos os dias, faço exercício físicos, meditação (5 min.) pelo menos, quase todos os dias. Faço as tarefas domésticas, às vezes fica por minha conta o café da manhã ou o almoço ou o jantar, outras vezes para o meu marido. Uma vez por semana fazemos faxina. Eu gosto de caprichar, então vai um dia inteiro. Tomo sol, quando tem sol, quase sempre. Enquanto isso, ouço o podcast “um livro em 5 minutos”, de Leandro Belinaso (tem no Spotfy). Leio e respondo mensagens, falo com a família. Retomei diferentes artes manuais: costura, bordado, tricô. Foi bom retomar essas atividades que oxigenam o cérebro, me fazem me lembrar de quem eu sou e ver belezas sendo produzidas pelas minhas mãos.

Raramente saí de casa nestes 34 dias de distanciamento social, acho que foram 3 dias para ir ao supermercado. Não me senti bem. Fiquei preocupada com a contaminação. Realmente, não sei o que eu gostaria que fosse retomado. O que tenho sentido é que o recolhimento é necessário para o planeta, não só para mim. Penso que o que eu gostaria que continuasse, mesmo após um retorno às atividades é que eu continuasse a fazer o que gosto: tomar sol, fazer as refeições com calma, ler literatura, ver filmes, me dedicar a corrigir um texto sem pressa, voltar aos textos teóricos necessários com atenção, descobrir outros autores. Quero continuar dando atenção a quem precisa de mim e a mim mesma, pois, muitas vezes, fico de lado quando me obrigo a dar conta de tudo, mesmo sentindo que vou perdendo a saúde. Sei que não quero o que era “normal”, nem um “novo normal”. Eu quero outro mundo. Eu quero ter tempo.

Quase 5 meses depois...

18.09.2020 – Cansaço

Nas últimas semanas tenho trabalhado 3 turnos todos os dias. Reuniões, áudios, grupos no WhatsApp que brotam a cada reunião para dar conta de resolver o que não foi possível na reunião e para conseguir resolver tudo o que precisa para iniciarmos o período emergencial remoto. E ele iniciou, finalmente, esta semana. Estou exausta! Há tempos não me sentia tão cansada. Com isso, veio a herpes e, além do cansaço, tive que conviver com uma ferida enorme que me olhava pelo espelho e me fazia lembrar que o “novo normal” está aí, se impondo nos modos de trabalho e de produção que nós mesmos vamos criando e/ou aceitando. Não tenho dormido bem. Certa noite sonhei com “equivalências de disciplinas” e depois sonhei que meu celular tinha trincado inteiro. É bom que no sonho eu resolvi como acabar com um dos problemas, o celular e tudo o que vem com ele. Mas o sono é agitado, além de sonhar, acordo muitas vezes, mesmo tomando melatonina.

Meus medos estão aos poucos sendo confirmados. Vamos voltando a uma forma de trabalho do jeito que der, mais intensa, pelas telas do computador e do celular. Sabemos que não é uma boa forma de trabalho, mas nos submetemos a ela. Nem tudo, obviamente é ruim, a tecnologia tem coisas muito boas, nos aproxima e nos possibilita fazer alguns trabalhos com pessoas que estão em lugares mais distantes que seria impossível estar junto no modo presencial.

Continuo em casa. Vou ao supermercado uma vez por semana. Cada dia leio menos e fico mais horas em frente as telas do computador e do celular. Toda semana recebo o resumo de uso indicando que aumentei x% em relação a semana anterior. Com tantas horas de tela, fico sem pique para ir para outra tela, a da TV, e ver qualquer coisa, até mesmo filmes. Já não faço exercícios físicos todos os dias, muito menos meditação. Já não tomo sol. Faz tempo que comecei um livro e ainda não terminei. Ando atrasada com as leituras dos textos de alguns orientandos. Estou cansada, desanimada, mas tem um semestre remoto pela frente. Onde buscar energia? Tento manter uma rotina com as artes manuais. Não consigo todos os dias, mas tenho conseguido fazer. Oxigênio, descanso para os olhos e para a mente.

Tenho ficado com um misto de tristeza e raiva de ver a forte campanha contra o funcionalismo público. Vejo-me trabalhando tanto e dizem que os professores fazem “corpo mole”, que não querem trabalhar. Tem gente que acredita. Os professores das universidades federais, então, são os piores, ganham salários altos para não trabalhar. Por essa razão também que a reforma administrativa é urgente para acabar essa “mamata” e salvar o país. De novo, tem muita gente que acredita, que apoia. Raiva, desânimo.

O COVID-19 continua fazendo vítimas pelo mundo. Há uma segunda onda de contaminação forte na Europa. Aqui no Brasil ainda estamos na primeira onda e as pessoas estão cansadas da pandemia e resolveram ligar o “foda-se” para o vírus. Despejos, queimadas, assassinatos, desemprego, Fake News, discursos de ódio, abertura das cidades, do comércio, das academias, afinal “vida que segue”. Vida de quem?


[Giovana Scareli, professora do DECED/PPEDU/UFSJ]

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