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Nesc

Primavera no inverno



No meio de uma reunião virtual pela manhã, recebo um torpedo. É de dona Fátima, uma mensagem padrão da operadora informando que a pessoa deseja que você faça uma ligação para aquele número. A "conheci" há duas semanas por meio de um grupo de trabalho que tem se mobilizado para atender populações em situação de rua e famílias em vulnerabilidade no município. Sou recém-chegada, entrei para o Eixo de Escuta, para contribuir especialmente com os casos de violência à mulher. Dona Fátima é o contato de uma das famílias que passei a acompanhar.


Em nossa primeira ligação telefônica conta sobre os bicos de faxina, as dores de estômago, a espera pela vacina que logo se aproxima, a filha desempregada com o neto bebê de alguns meses. Vai tudo bem, tudo tranquilo. Agradece pela cesta e pergunta se por acaso não havia umas cobertas para doação, estava com frio. É tudo que sei de dona Fátima.

Espero a reunião acabar e ligo um pouco preocupada. Conta que a comida acabou, teve que dividir com a filha. Me pergunta se eu teria um pacote de macarrão ou um saco de feijão. Eu tenho, penso, mas sigo isolada, trabalhando de casa, sem carro, sem sair. Pergunto dos vizinhos, dos parentes, do posto de saúde, uma opção parece pior que a outra para ela. Digo que verificaria com o grupo e retornaria. Me agradece com bênçãos de todos os santos.


Encaminho o pedido ao grupo pelo WhatsApp, e no meio do meu almoço recebo a mensagem da disponibilidade de algumas cestas, e pessoas para levarem uma até a sua casa. No meio do meu prato, do meu arroz com feijão, couve, angu, carne, salada, recebo a notícia de que aquela mulher conseguiria comer até o fim do dia.


Interrompo a refeição, ligo contando da notícia, agradece com mais bênçãos, e me oferece uma florzinha que plantou. Agradeço dizendo que não precisava, que poderia ficar enfeitando a vida dela, insiste "eu tenho muitas". Engasgo, agradeço e digo que a pegarei no dia em que possamos nos conhecer pessoalmente.


Não sei como é dona Fátima, ela não tem WhatsApp, não tem uma foto naquela bolinha para que eu conheça seu rosto. Sei só sua voz. E sei pelo jornal que passa na televisão que ontem a temperatura foi de 1 grau. Sei que meu armário tem cobertores e que minha geladeira tem comida nessa casa da zona central. E sei que por ela, além disso tudo, eu teria uma flor.


[Núbia Rodrigues. Estudante de psicologia da UFSJ, integrante do Estágio Extensionista no OBESC. 20 de julho 2021] Diários da Educação: Série Extensão Universitária.


Fotografia de Richard Neves.


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