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Más.ca.ra [Verbete da Pandemia]

Atualizado: 10 de mar. de 2022



1. Seu uso é repleto de sentidos, pode significar a presentificação de entidades não humanas como nas sociedades asiáticas e africanas, a representação de algo ou pode ter o objetivo de ocultar a identidade de quem a usa como nas máscaras venezianas. Não necessariamente apenas um desses requisitos. De forma geral, as máscaras significam a momentânea suspensão dos signos da identidade pessoal dos mascarados.


Entretanto, a humanidade se deparou com a sua inserção no cotidiano de forma abrupta por meio da pandemia de COVID-19. Adicionou-se, então, o caráter utilitário das máscaras: evitar a transmissão do vírus Sars-CoV-2. A máscara nunca perdeu seus sentidos iniciais, contudo, apesar de ser muito utilizada em reuniões, hoje, ela representa uma cessão da corporalidade social (indicada por Durkheim, onde o corpo possui centralidade nos eventos festivos e, portanto, nas relações interpessoais), isto é, a suspensão do corpo como instância principal do relacionamento social. Há, assim, a supressão do rosto e da sua plena capacidade expressiva (de emoções e sentimentos sobre os quais são sustentados os pilares da sociabilidade humana)

2. A pandemia de covid-19 nos mudou de várias maneiras: como nos relacionamos com os outros, como usamos os espaços, a maneira como viajamos e até a maneira como nos vestimos. As máscaras passaram a fazer parte do nosso “look” diário e da paisagem cotidiana. Embora no Brasil isso seja novo, outras culturas já possuem essa prática há décadas, ou até mesmo séculos – e ela não está relacionada apenas à proteção contra contaminação por patógenos. O Japão é um dos principais exemplos. Segundo historiadores, há um momento claro na história em que as máscaras são incorporadas aos hábitos dos japoneses, e esse momento é a pandemia de gripe espanhola do início do século 20. O governo japonês montou uma estratégia de vacinação, isolamento e uso de máscaras cirúrgicas ou máscaras faciais para impedir a pandemia, o que acabou ajudando a controlar a crise. As pessoas assumiram isso como parte de seus costumes, apontando que as máscaras também eram uma barreira contra a poluição. Mas porque, mesmo após o fim da pandemia de gripe espanhola, os japoneses mantiveram essa prática?


Para o professor de história japonesa George Sand, da Universidade Georgetown, eles fizeram isso porque confiavam na ciência. O uso de máscaras era uma recomendação científica, vista pelos japoneses da época, em um país em processo de industrialização, como adaptação ao mundo moderno, como avanço tecnológico. No novo milênio, as máscaras no Japão se tornaram onipresentes, não tanto por causa de diretrizes estatais ou aspirações cosmopolitas, mas por causa do que é conhecido na psicologia como uma 'estratégia de enfrentamento' e uma escolha estética. A estratégia de enfrentamento, de acordo com a teoria, abrange os recursos externos e internos que uma pessoa usa para se adaptar a um ambiente estressante. É uma questão cultural. Os japoneses adotaram o uso de máscaras por vários motivos: para proteger os outros ou a si mesmos, esconder sua falta de maquiagem, preservar sua privacidade ou simplesmente porque pensavam que as máscaras pareciam boas, mas nunca por imposição do governo – diferentemente do Brasil.


O uso de máscaras, de maneira correta e constante, pelos japoneses, é uma das razões por trás da baixa taxa de infecções e mortes por covid-19. O Japão tem a segunda taxa de mortalidade mais baixa entre os sete países considerados as maiores economias do planeta (EUA, China, Alemanha, França, Reino Unido e Canadá). Nesse quesito, fica atrás apenas da China. Mais uma prova da eficácia desse novo “acessório”.

3. O vírus se tornou um indicador de identidade tribal”. Assim advertia o psicólogo social Jonathan Haidt nas páginas do The New York Times. O mesmo se referia a realidade norte-americana, contudo tal cenário também foi observado no Brasil, em que a polaridade política é marcante desde 2016. Essa dualidade foi evidente durante a pandemia em que um grupo pregava o uso de máscaras, o lockdown e a segurança das vacinas, enquanto o outro era contrário a medidas de afastamento e proteção, negava (e nega) a eficiência dos imunizantes injetáveis e pregou o uso de um suposto tratamento precoce com remédios prejudiciais ao organismo e sem qualquer eficácia, no formato de “kit covid” (azitromicina, ivermectina, cloroquina).


Nessa realidade, em que reafirmar medidas científicas ou negá-las é um pré-requisito a entrada em um dos lados da dicotomia ideológica brasileira, usar ou não máscara se tornou um ato de reafirmação do lado assumido, uma espécie de bandeira. Esse objeto tão raro no país antes de 2019, se tornou um símbolo da sua escolha política, pois aqueles que seguem o presidente, se recusam a usar tal artefato pois escolheram o lado negacionista, o lado que se diz preocupado com a economia e com famílias que possam ficar com fome, quando na verdade estão preocupados apenas com o quanto podem lucrar, com a venda de remédios ineficazes ou vacinas não aprovadas pela anvisa, mas superfaturadas. Assim, a vida dos cidadãos que foram induzidos a negar a proteção, que foram induzidos a recusar o uso da máscara, tornou-se uma moeda no jogo inescrupuloso da necropolítica brasileira.


[Camila Beretta Okudaira; Jordana Guimarães Pinheiro Chagas; Júlia Lorrayne Santos Nascimento. Estudantes de Medicina da UFSJ. Trabalho desenvolvido na disciplina de Ciência, Metodologia e Pesquisa social. Verbetes da Pandemia, NESC-UFSJ, 2021].


Sugestões de leitura

GOMES, Fábio. Sobre a pandemia: falta lógica e sobra polarização. Jornal da USP, 2021. Disponível em <https://jornal.usp.br/artigos/sobre-a-pandemia-falta-logica-e-sobra-polarizacao/>. Acesso em:06 de novembro de 2021.


LEAL, João. Máscaras COVID-19 e outras máscaras. Sociologia & Antropologia, v. 11, p. 157-162, 2021.


MILLÁN, Alejandro. Coronavírus: por que os japoneses já usavam máscaras muito antes da COVID-19. BBC, 2020. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/internacional-53452695>. Acesso em: 06 de novembro de 2021.

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