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  • Nesc

30. Moldura mortificada


Fotografia de Nataniel Kaoru, acadêmico da UFSJ. Mais fotografias podem ser encontradas em seu instagram @natakaoru.jpeg.



Depois dos meses me incorporando à mobília do meu próprio quarto depois de tanto tempo passado entre as paredes, passei a dar mais atenção a alguns detalhes, como a minha janela.


Da janela do meu quarto vejo um pedaço da rua, um canto de luz. Dá até pra sentir uma brisa do vento.


Da janela do meu quarto vejo o terraço vazio da casa vizinha, as casas ao lado que foram ganhando segundos andares assim como a minha. A motivação no nosso caso foi a enchente anos atrás que assustou muita gente.


Da janela do meu quarto vejo a grade que em nome da segurança, constantemente me lembra de que não estamos seguros.


Da janela do meu quarto vejo a rua de bloquetes, uma das poucas que ainda não foi asfaltada pelo prefeito aficionado por asfaltar e fazer campanha sobre asfaltamento até em época de pandemia viral.


Da janela do meu quarto vejo prédios em construção. O barulho das marteladas e da tremendamente irritante makita não parou um dia sequer. Edifícios alicerçados em pilhas de cadáveres, nada pode parar.


Da janela do meu quarto escuto as vizinhas vivendo a vida e a vida de outros. As queixas sobre a família, a máscara, a depressão.


Da janela do meu quarto escuto os latidos dos cachorros, as buzinas dos carros, as rádios tocando um sertanejo antigo, as crianças brincando e pássaros gorjeando.


Da janela do meu quarto vejo um pedaço do céu, pedaço azul que me faz recordar da imensidão e das minúcias, do “pálido ponto azul” no escuro.


Da janela do meu quarto vejo um pássaro preso entre as ferragens do telhado debatendo fortemente as asas na tentativa de sair. O barulho é de angústia.


Da janela do meu quarto, vejo dois besouros de barriga para cima movendo as patas lentamente até cessar.


Tem dias que eu queria que tudo se calasse, mas tenho medo de um dia os ventos acatarem meu pedido.


A janela me lembra da vida e da morte lá fora. Enquadramentos estranhos do sobreviver monótono.


Com o fogo que ainda irradia aqui dentro depois de todo esse tempo, eu queimaria gaiolas. São muitas, e eu não posso deixar a faísca se apagar.


[Núbia Vale Rodrigues. Estudante de Psicologia da UFSJ. 4 de agosto de 2020]

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