Arte de Laura Domingues.
Antes eu conseguia acordar e ver a serra. Qual serra é essa a gente nunca descobriu, mas acordar e olhar pra lá me trazia lembranças de cachoeira e dormir sob a luz das estrelas. Agora tem um prédio sendo construído. Todo dia, acorda, abre os olhos, sente os sons chegando, tec tec tec, lembra da construção. Todo dia, às sete da manha. Como eu sei que já é fim de semana sem olhar o calendário? O tec tec tec para. Mas esses dias finalmente encontrei uma posição na mureta da área de serviço que me permite ainda olhar pra serra. Se eu me sentar apoiando a perna direita no cano do chão, fazendo um ângulo de 45° graus no pescoço e mexendo apenas pra levar a xícara de café até a boca, consigo olhar pra serra. Tô brincando. Não precisa de toda essa ajeitação, apesar de o espaço ser pequeno mesmo pra se acomodar. E por que agora tanta vontade de ver a serra? Porque tem dias que é preciso poder olhar pra outro lugar que não a tela do computador ou as paredes do apartamento. Mas tem ainda o quintal da minha vizinha pra observar. Duas idosas, vinte e um gatos. E contando, né. Esses dias vi mais dois filhotes, pelo menos. Passo uns minutos às vezes olhando e acompanhando eles explorando os telhados dos vizinhos, as árvores, as milhões de plantas do quintal. De longe, o gato preto me olhou. Parece que sentiu que era observado. Mas não se preocupe gato. Do alto do terceiro andar, só consigo continuar olhando mesmo. Acabou o café. Tec tec tec. Parede do quarto. Tela do computador. Retorno à quarentena e seus bons dias ou ao bom dia da quarentena.
[Larissa Arantes. Estudante de psicologia. UFSJ/PET Saúde. 12 de maio de 2020]
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