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A escuta à distância


Fotografia de Nataniel Kaoru, acadêmico da UFSJ. Mais fotografias podem ser encontradas em seu instagram @natakaoru.jpeg.


Estava em um momento do processo terapêutico muito importante. Assim que soube da suspensão do calendário acadêmico, voltei para a casa dos meus pais. Saímos às pressas de São João Del-Rei, em tempo apenas de fazer uma pequena mala e pegar alguns livros. Mandei uma mensagem apressada para a minha psicóloga falando que não poderia comparecer presencialmente às sessões. Ela compreendeu. Ao chegar no interior, entrei em um modo automático e estritamente racional. Tentando ainda entender tudo o que estava acontecendo, mergulhando dias seguidos em noticiários para coletar o possível de informações, estabelecendo regras de limpeza na casa, comprando máscaras, álcool em gel, ligando em supermercados e farmácias para saber se estavam entregando, comunicando com amigos, criando estratégias para fazer meus pais e minha avó, que estão no grupo de risco, compreender que era necessário ficar em casa e que não daria para encontrar os parentes ou ir todo dia na padaria, foi quase impossível me permitir sentir algo nesse momento. Na verdade, não dava tempo de sentir nada. Era necessário agir de forma imediata. Após algumas semanas, recebo uma mensagem da psicóloga sobre a possibilidade de atendimentos online. Ela dizia nunca ter utilizado os recursos virtuais para esse fim, mas que começaria a atender dessa forma até tudo se “normalizar”. Olhei por alguns minutos as palavras digitadas por ela gravadas na tela do meu celular e não consegui responder à mensagem. Não estava pronta para voltar a falar sobre sentimentos, pensamentos e afetos. Ainda estava ligada no modo obsessivo, prático e lógico. O momento de hesitação passou e respondi que por enquanto não, mas que daria um retorno caso mudasse de ideia. Passaram-se três semanas. Comecei a perceber que estava engolindo demais as minhas aflições, que começaram a crescer progressivamente paralelamente aos número de casos de infectados no Brasil. Já havia perdido as contas de quantos médicos, jornalistas, políticos, biólogos, ouvi falarem diariamente sobre a pandemia. O desgoverno ignorando completamente a realidade empírica. Meus pais começando a se sentirem inúteis em casa, inventando novas receitas culinárias e lamentando as vidas perdidas e a saudade dos amigos e parentes. Pessoas perdendo seus empregos. Instituições pedindo apoio solidário. Alunos sem o almoço diário distribuído nas escolas. Estava sufocante. Mandei uma mensagem para ela agendando uma sessão. No primeiro encontro, me perguntou como eu estava. Disse estar bem. Havia comida em casa, banho quente, computador, internet. Meus pais também estavam bem. Conseguia me ocupar com algumas atividades feitas pela internet. Nos despedimos e fechei a tela da chamada de vídeo. Ao final da sessão, percebi que ainda me encontrava na resistência perpassada pela lógica racionalista. Ela também percebeu e na sessão seguinte me sacudiu um pouquinho para que eu me deixasse balançar e permitir uma abertura naquele discurso conciso e fechado em si mesmo. Ali, eu não precisava sustentar um “tá tudo bem, vai passar” para mim mesma e nem aos outros ao redor como havia feito por todos esses dias. Eu podia me despir dessa armadura e deixar transparecer as dores que sentia nesse momento, sem a proteção de nenhuma máscara, nem mesmo aquela que agora estamos usando para impedir a entrada de um vírus. A escuta do profissional de psicologia é realmente diferenciada. Mesmo com caídas na internet, com falhas na conexão, com um “não escutei bem, será que você pode repetir?”, ou com imprevistos de “minha bateria vai acabar, você me espera pegar o carregador? e de animais aparecendo no meio das sessões, não faz perder a função daquele que se presta ao outro. Claro que o corpo perde muito de seu lugar, o olhar e a voz tomam conta da cena, o setting improvisado e a poucos metros de distância de outras pessoas pode ser estranho. Contudo, os efeitos analíticos continuam. Para além dessas mudanças, o que faz uma terapia acontecer é o encontro entre duas pessoas. Uma presença que se faz personificada na voz, nas pontuações e interpretações. É a sustentação de uma vida que pulsa diante de si. A leve chacoalhada da sessão seguinte funcionou. Depois desse tempo todo, me permiti, ali, chorar pela primeira vez.


Daniela, 22 de junho de 2020.

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