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  • Nesc

Dias que pareciam intermináveis

Atualizado: 27 de mai. de 2022



Meu marido foi o primeiro a contrair a Covid-19. Sentindo dores no corpo, ele fez o exame e testou positivo. Era o período mais crítico da pandemia e ainda não havia chegado vacinas na cidade. Não demorou muito para que eu, meus dois filhos e minha neta também sentíssemos os sintomas. Nessa altura, já estávamos todos contaminados e fomos ao pronto atendimento do Hospital. Fomos internados na enfermaria, em leitos lado a lado, na ala da Covid-19. E ficamos ali, todos juntos. Foi a primeira vez na minha vida que estar ao lado dos meus filhos me trouxe dor, medo e sofrimento.

Por ser grupo de risco em razão da idade e estar sentindo falta de ar, fui transferida para um leito de UTI, sem imaginar que dali não sairia tão cedo. Ao chegar ao leito de UTI já não entendia bem o que estava acontecendo. Abria os olhos e via paredes brancas, uma sala grande com vários leitos lado a lado e separados por uma cortina. Ouvia-se o barulho dos aparelhos ligados 24 horas por dia. Havia uma movimentação silenciosa e intensa de médicos e enfermeiros. Tudo era muito rápido. Via leitos serem ocupados, pouco depois desocupados e logo ocupados novamente. Saia um, entrava outro. Chegavam pessoas e saiam vultos, corpos enrolados no lençol.

Tive uma crise de pânico ao perceber que a pessoa que havia chegado ao leito de UTI ao meu lado, era meu próprio filho. A minha maior dor foi ter meu filho internado ao meu lado na UTI. Separados por uma cortina entre os leitos, eu apenas ouvia sua voz fraca quando sussurrávamos palavras de força um para outro. Pensamentos horríveis me atormentaram. Pensava que eu podia estar ali, naquele lugar, mas meu filho não! Queria levantar para acolhê-lo e não podia. E se eu não pudesse vê-lo nunca mais? Pensei no meu marido e meu outro filho que ficaram na enfermaria. O que teria acontecido com eles? Estariam vivos? Este foi, certamente, o pior dia da minha vida.

Assim, envolvida nesses pensamentos e sem saber se era dia ou noite ou quantas horas haviam se passado, a minha crise de pânico se agravou, não conseguia mais respirar mesmo com a ajuda do respirador mecânico e fui levada para outro leito para ser entubada. Ao ser conduzida, passei perto do leito onde estava meu filho. Pude vê-lo muito rapidamente e me despedir dele com um olhar. Era como se estivessem me levando para um lugar sem volta onde eu não poderia mais cuidar da minha família, como sempre fiz. Naquele momento eu senti a vida escapando pelos dedos; senti a sua fragilidade tocando minha alma; senti a minha vulnerabilidade e a minha imponência diante de uma doença. Eu que sempre fui forte, tive raiva por estar assim.

Hoje, depois de passado tudo isso, soube que depois que fui entubada, meu filho que estava na UTI ao meu lado, também foi entubado. Quase morreu, assim como eu. Mas felizmente, ele se curou e teve alta, enquanto eu permaneci na UTI. Meu outro filho e meu marido permaneceram internados na enfermaria na ala da Covid-19 por alguns dias e depois tiveram alta, curados.

Entubada, a minha luta foi calada, comigo mesma. Estava inconsciente, mas sei que lutei muito, todos os dias. Lembro-me que queria acordar, que fazia força para levantar e não conseguia. Queria ver meus filhos! Tive pesadelos agonizantes. Diante dos meus olhos, dia e noite, cruzes de espinho se formavam sem parar. Era algo infinito e interminável. Eu queria parar com aquilo e não conseguia. E assim permaneci por setenta dias no leito de UTI. Foram trinta dias por causa da Covid-19 e mais quarenta dias por causa de consequências da doença. No intervalo destas internações fui extubada e tive alta, voltei a ser internada com complicações da Covid-19. Tive embolia pulmonar, infecção e outras coisas mais a ponto de ser, por um momento, desenganada pelos médicos.

Sinto-me uma pessoa de muita sorte, pois recebi um tratamento médico adequado, contei com uma rede de apoio, cuidado, orações e palavras de carinho de familiares e de amigos. Dói-me pensar quantas pessoas não tiveram esse tratamento e mesmo tendo não tiveram cura. Sei que mesmo tendo sorte e um tratamento eficaz, não estaria aqui se não fosse a vontade de Deus.

Hoje ainda choro e sinto as dores e as angústias desses dias que pareciam intermináveis. Todos nós sofremos muito inclusive minha filha que foi a única da nossa casa que não contraiu a Covid-19, mas teve que ser esteio da família nesse momento de internação nossa. Tivemos uma segunda chance e a oportunidade de refletir como a vida é tão preciosa e fugaz, que um dia qualquer e sem avisar, ela se encerra. Hoje, só quero agradecer e aproveitar os dias ao lado dos meus entes queridos, pois sei que o único tempo que verdadeiramente temos é o agora!


[Narrativa colaborativa construída com base no relato de Jane Maria, uma mãe e esposa que venceu a Covid-19, residente na cidade de São João del-Rei, em parceria com Aline Resende, estudante de Psicologia na UFSJ, integrante do Estágio Extensionista no OBESC-NESC. 30 de novembro de 2021. Narrativas da Pandemia: Série Eu tive Covid-19. OBESC-NESC, UFSJ, 2022].


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