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Nesc

A primeira receita que escrevo


Fotografia por Carlos Falci


Um livro de receitas começa com uma lembrança. E depois se desdobra, redobra, se mistura com o começo da manhã, com um abacate que se descobriu maduro na fruteira. Diga-se de passagem, fruteira peculiar, pois abrigava uma maça, seis ou sete limões capeta, dois limões verdes e o abacate. E duas mexericas cariocas, aquelas pequenas azedinhas, como iria deixa-las de fora, eu que sou apaixonado pelo gosto e cheiro de cada uma? Na cozinha, olhei para o abacate e percebi que tinha que fazer algo com ele. Me veio o mais simples: uma vitamina. Mas uma receita é um conjunto de lembranças e agora aqui do lado desse caderno (que imagino que será meu caderno de receitas) está uma cumbuca com guacamole. Uma receita é um experimento e por isso não deve ser seguida à risca. Afinal, afinal, uma receita não se explica. Se faz. Para essa minha guacamole de hoje, 02 de setembro de 2020, eu usei: - metade de um abacate maduro; - quatro ou cinco tomatinhos uva; - uma receita que achei na internet, depois de procurar por “como fazer uma guacamole simples”; - um tempeiro caseiro que eu fiz com alho, sal e pimenta do reino. Lembrei dele guardado no armário, dentro do socador de alho que tenho aqui. Comprei um novo no Mercado Central de Belo Horizonte, e guardei o antigo como uma relíquia de família, mesmo estando rachado; - um pouco de cebolas picadas que encontrei no meio de vários potinhos que estão guardados na geladeira. Preciso limpar a geladeira, urgente (enquanto digito essa versão da receita, no dia 14 de setembro, devo dizer que a limpeza da geladeira vai sendo feita a contento. Descobri várias coisinhas gostosas que estavam lá dentro me esperando. Descobri também algumas que haviam cansado de me esperar, infelizmente para mim; - um limão verde da fruteira, que parecia ser incapaz de ainda dar um caldo, mas me fez lembra que as aparências podem enganar; - azeite, um tanto, mas não muito; - a salsinha que comprei ontem para fazer cheiro verde, porque não tenho coentro, e não sou muito fã dele, embora entenda o seu lugar no meio de muitas misturas; - um suco verde que fiz ontem e estava no liquidificador. Estava muito bom e me ajudou a decidir que seria melhor fazer a guacamole do que lavar o liquidificador para fazer uma vitamina de abacate (em tempo, o suco não entra na receita, você toma ele antes de começar. Ou depois, esssa parte também é com você); - uma cumbuca que comprei num lugar lindo chamado Corval, onde tem cerâmicas de várias formas: pintadas, cruas, coloridas, feitas como se fossem de azulejo. Corval fica perto de Monsaraz, em Portugal, que é uma cidade imaginária muito real. Ali estive em 2019, em novembro, e fiquei me perguntando se seria capaz de ir embora de lá. Carrego em mim as ruas brancas e um pátio de uma casinha onde eu poderia ter sentado e escrito essa receita durante três meses. A cumbuca de hoje é bem colorida e ajuda na composição do prato; - um garfo, duas colheres, uma tábua para picar as coisas todas; - um pouco do sol das 7h da manhã; Continuo hoje a escrever a receita de guacamole, dia 13 de setembro. Começo amassando metade do abacate, enquanto ouço o álbum de Sona Jobarteh, chamado “Motherland”, que é uma trilha sonora para o filme de mesmo nome. E a capa do álbum (e do filme) é uma silhueta de uma mulher negra grávida do continente africano.

Junto com o abacate, acrescento o alho (ou tempero caseiro de alho, sal e pimenta), o suco de limão, sal e e o azeite e faço uma espécie de purê. Hoje peguei umas quatro ou cinco colheres de sobremesa de abacate, duas colheres de café do tempero com alho, sal e pimenta. E azeite a gosto. Depois que o purê ficar pronto, vou colocar um quarto de cebola média picada e três tomatinhos uva, misturar e pronto.

Hoje, quando acordei, me lembrei da guacamole, de uma caminhada no Parque do Rola Moça, e quando cheguei na sala estava em cima da mesa o livro de Guillermo Bonfil Batalla, “México Profundo: uma civilização negada”.

Coloquei cinco tomatinhos uva, e não só os três que havia tido. E posso colocar também somente uma colher e meia do tempero caseiro, para as quantidades que indiquei lá em cima. E uns três fios grossos de azeite. A gente percebe que a receita “deu certo” quando ela fica com o gosto que imaginamos lá no começo da feitura.

Na semana em que fiz essa receita pela primeira vez, veio um texto enorme no momento em que estava na cozinha. Mas acabei comendo uma boa parte dele com a guacamole, porque eu tinha muita fome. Eu tenho muita fome de manhã.


[Carlos Falci, professor da EBA/UFMG, 15 de setembro]

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