top of page
Nesc

Bolsos cheios



Quando tudo começou, eu pensei “mano, agora já era”. Fiquei um bom tempo sem sair de casa, meu trabalho mudou para home office por uns 15 dias e tive muito medo. Ainda tenho. Sei que isso aqui vai ser para sempre. Falar da pandemia é estranho, porque parece um borrão para mim. Não tenho nítido tudo que aconteceu.


Eu comecei a trabalhar numa clínica oncológica uns meses antes da pandemia começar. Era considerada linha de frente, então tomei a vacina um pouco mais cedo. Já estou com as três doses. Era louco, mano. Pegava o ônibus de 7h20min, sendo que meu turno começava às 8h. Saía cedo para evitar a aglomeração. A pandemia não existia no ônibus, nunca existiu. Todos os dias, antes de entrar na clínica, mediam nossa temperatura e perguntavam se estávamos com algum sintoma gripal - se eu tivesse com nariz escorrendo, não podia entrar não, tinha que esperar um médico chegar e conversar com você. Também tinha um alarme que tocava a cada duas horas para higienizarmos nossa mesa e materiais, trocarmos as PFF2. Ouvi relatos muito difíceis lá dentro. As enfermeiras não pararam. Teve uma que ficou sem poder ver o filho dela, porque estava trabalhando nesse momento caótico. Eu acho que não aguentaria.


Falar disso é difícil, dá uma dor no peito… Perdi meu padrinho em fevereiro deste ano, de acidente de caminhão. Não tive despedida. De repente ele não estava mais aqui. O que me conforta é que ele era um homem muito bom, sabe? E amado por tanta gente! A pandemia também tirou isso da gente: o “adeus” que ajuda no luto, em processar a perda. Só queria mais tempo, muito de nós também.

Em maio, meu primo faleceu de covid. Foi doloroso. A ferida da perda do meu padrinho nem tinha cicatrizado ainda. 32 anos e tinha acabado de ficar noivo. Tanta história que ainda precisava ser escrita. E houve esperança, porque, quando estavam prestes a declarar morte cerebral, ele reagiu. Ele estava lutando muito. Mas escutamos aquilo que ninguém queria. Quando ele morreu, meu irmão tinha contraído a covid-19 e o sentimento foi de desespero. Medo avassalador de acontecer a mesma coisa. Ele se recuperou, apesar de ter tido sintomas evidentes e ter pegado duas vezes - a companheira dele é enfermeira. Mas ele tem sequelas até hoje: o fôlego não é mais o mesmo, precisa usar duas bombinhas de ar e fica cansado facilmente.

Aconteceu tudo isso e a gente vai normalizando, colocando as mortes no bolso e indo. E o bolso está cheio: 613 mil pessoas, vidas. Bem, eu não acho normal, não consigo.


[Narrativa colaborativa escrita depois do encontro entre Maria Eduarda e Luana Kaori, unidas pela cidade de São José dos Campos e por gostos clichês que dão vergonha de serem falados em voz alta, mas que nos reconfortam. 23 de Novembro de 2021].


Fotografia: Ana Gouvêa. Esse e outros trabalhos estão disponíveis em seu Instagram: @cactuana.


70 visualizações

Posts recentes

Ver tudo

Fim de jogo

Para Gloria

Comments


bottom of page