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Fim de jogo



Não me acho muito bom em encontrar palavras para descrever o que eu sinto, mas não é difícil dizer o que vem à minha cabeça quando escuto a palavra pandemia. Solidão: sentimento fechado, vazio, de isolamento. Sempre fui claustrofóbico. Todos os dias desses últimos dois anos deixaram esse significado mais claro, mais vívido e vivido. Me fizeram lembrar de como é possível estar sozinho mesmo não estando. A solidão se aproxima quando não é possível estar cercado dos seus, de trocas verdadeiras e afetuosas. Estar com gente não significa muita coisa. Esse tempo todo eu queria mesmo estar com as pessoas certas, com o meu time. Mas não pude.

A pandemia foi uma mudança drástica. Ela, além da solidão, me trouxe muita tristeza, que se atualizou todos os dias de formas diferentes. Junto com ela, se aproximaram de mim picos de tristeza absoluta, picos mais suaves, e até mesmo os vales se entristeceram. Enquanto solidão é estado de estar só, tristeza é soma. Pessoas morrendo na TV e ao meu redor + impotência de assistir o que acontece rapidamente sem poder agir + falta de tempo para cuidar do luto, já que outro me atropela logo em seguida + banalização da vida humana + 100, 200, 300, 600 mil mortes. Tudo vira número. E a tristeza se torna tão real que parece ganhar forma: fraca e curvada. Parece um pouco comigo. E com o Smeagol do senhor dos anéis. Talvez nossos corpos tenham se confundido há um bom tempo atrás. Depois de 300 anos preso numa caverna, ou 2 anos presos dentro de casa, perdemos a sanidade.

É difícil achar palavras ou os “melhores momentos” que expliquem tudo o que aconteceu. Meu corpo reage: balanço as pernas, contorço a boca. O vírus feio, de cara ameaçadora, mudou tudo. Essa partida durou bem mais do que 90 minutos. Enquanto o mundo inteiro tentava parar o assassino invisível de feição clara, eu sentia que ele era imparável. Ainda mais quando seguimos todos desunidos, sem técnico, fazendo o combate à nossa própria maneira. Enquanto éramos goleados, eu continuava minha rotina, regada à máscara, álcool em gel e medo.

Durante minha sobrevivência, o tempo passou cada vez mais devagar, em tantas repetições que fizeram a monotonia virar um padrão que passava rápido demais por mim. Já não lembro dos dias, só da angústia de olhar para a hora e pensar que o cronômetro havia travado. De 11 da manhã às 3 da madrugada, tudo segue igual: fico cansado, descarreguei. A angústia só se tornava mais angustiante, as incertezas cada vez mais preocupantes. O álcool em gel cada vez mais necessário, com seu cheiro me aproximando da segurança; a máscara, apesar de deixar minha respiração pesada, se tornou sinônimo de libertação. O mundo me afogava em ondas roxas feias e mentirosas, que na verdade nunca aconteceram; em ondas vermelhas e amarelas fracas, que não conseguiam deter nada. O vírus nadava de braçadas em ondas verdes enganadoras. As noites ficavam cada vez mais sozinhas, a companhia mais escassa, os noticiários se tornaram minha única distração, o sono se tornou inexistente, a cama desconfortável. A esperança... o que ela era mesmo?

O campo também mudou. Os lugares aos quais antes eu pertencia, ainda que nunca tenham sido muito seguros, ficaram mais ameaçadores. E o mundo não parou com meu tormento. Precisei continuar sendo um estudante, ainda que faltasse o que me fazia aprender: a troca, e sobrasse o que eu sempre detestei: solidão, prazos de entrega, sobrecarga. 6 meses em 2 ou 3. 3 períodos em um ano. Além da pandemia, o Ensino Remoto é o que tem me esgotado todos os dias.

Vivendo tudo isso, achei que não poderia piorar. Mas o retorno do intervalo mostrou que eu estava errado. Ele trouxe a segunda onda, o momento mais difícil para mim. 2000 mortes diárias. Nervosismo. Ansiedade. Falta de ar. A defesa do nosso time estava quebrada. O ataque do vírus era imbatível. A derrota era inevitável. Qualquer dia naquele espaço até antes do meu pai ser internado reflete bem o que os últimos anos significaram. E aí, subitamente, em menos de 1 semana, eu o perdi. Tudo o que eu consegui guardar foi a última foto que ele me mandou: máscara do Flamengo, deitado, com o oxigênio no nariz. O vírus com cara de assassino matou mais uma vez. Dessa vez um dos meus.

Eu temi por esse momento o tempo todo. Eu pressenti que ele chegaria. Mas eu nunca imaginei que seria meu pai. Jamais imaginei que perderia a possibilidade de um futuro onde a nossa relação fosse diferente. Acima de tudo, a raiva de pensar nos discursos que o convenceram me dominam. Talvez se ele, sem instrução, não ouvisse de alguém que acreditava que a cloroquina o manteria seguro e que o uso de máscaras ou o isolamento eram dispensáveis, as coisas seriam diferentes. Se o vírus assassino matou meu pai, Jair foi o cúmplice do crime. Fui roubado em um jogo sem juiz ou VAR capaz de corrigir isso. E o Flamengo não ganhou aquela última partida antes dele partir. Eu tinha direito a uma última comemoração. Anestesia. Exaustão.

Minha vida tem sido um filme ao qual eu não gostaria de assistir. Queria que houvesse conforto em meio a esse caos, mas não houve um porto seguro. Minha família, mesmo depois dessa perda, seguia me expondo ao que eu mais temia: o vírus assassino. Minha casa, o único lugar que devia ter permanecido seguro, não era. A convivência pode ser difícil demais. Até quem era para jogar do meu lado parecia estar jogando contra mim. O medo me assolou em todos os cantos. Espero me livrar logo dessa figura pensativa e forte, mas sei que vai ser muito difícil, ainda que o mundo siga caminhando em breve.

Eu sabia esse tempo todo que minha única chance de sobreviver era ser vacinado. Longos 8 meses se estenderam do início da vacinação até a minha primeira dose. Depois mais 3 para até segunda: uns dos mais nervosos da minha vida. Ataques de pânico, respiração ofegante. Vi esse dia se aproximando lenta e ansiosamente. Como se aquele último minuto de uma prorrogação se repetisse incansavelmente. O medo de não sobreviver até minha vez chegar era grande. Mas eu consegui. A vacina me trouxe uma leveza que não sentia há muito tempo. Meu corpo pôde se descurvar um pouco. Reconquistei o direito de estar preocupado com a final da libertadores e não com a maneira que vou me manter vivo.

Como os momentos bons eram escassos, tive que me apegar às coisas pequenas. Ao Flamengo: nunca torci tanto, por tanto tempo e tão intensamente. À minha namorada: ficamos mais apegados, mais íntimos. Ao meu Estado: assistir MGTV era minha distração, minha mineirice se acentuou cada vez mais, “como” cada vez mais as palavras.

Mas o Thiago de agora não é o mesmo de 2020. O de agora perdeu muita coisa, só ganhou peso. O que dói é saber que o que foi perdido talvez nunca possa ser reencontrado. Por outro lado, o mundo de agora não parece diferente. O desrespeito às medidas restritivas, a balança pesando mais para o material do que para a vida, tudo continua igual. Ninguém se preocupa de verdade com o que perdemos. Com o que eu perdi. O Brasil de agora também ainda é muito parecido, mesmo com a fome tangível e a inação deles enquanto milhares dos nossos morriam. Se a maioria quer uma pessoa diferente para presidente, esse alguém continua sendo bem parecido com quem está agora no poder, o cúmplice de assassinato. Dispensam o capeta para dar lugar ao diabo. É preciso estar atento e forte.

Sei que sou um péssimo jogador para dar entrevista no final do jogo, nunca sei o que dizer. Mas dessa vez disse palavras demais para tentar explicar o caos que tenho vivido. Talvez porque eu sei que provavelmente elas nunca serão suficientes, nem se eu ficar aqui até sexta às 15h. Mas tentar é bom, organizar a dispensa da minha cabeça, ligar os pontos, transformar o amontoado em um sentido. Talvez em breve seja possível precisar parar de sobreviver. Sair do modo de emergência. Finalmente sair de campo e descansar.


[Narrativa colaborativa escrita a partir do encontro entre Thiago Vilela, estudante de Engenharia de Produção na UFSJ, e Clara Anselmé, estudante de Psicologia na UFSJ. São João del-Rei, 29 de novembro de 2021]


Fotografia: Yura Khomitskyi (Banco de imagens Unsplash)


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