Fotografia de Nataniel Kaoru, acadêmico da UFSJ. Mais fotografias podem ser encontradas em seu instagram @natakaoru.jpeg.
Todos nós temos medo da morte. Ela é uma fatalidade, entretanto, a tememos. Clarice Lispector nos lembra, em seu manifesto a favor do medo*, que o medo é primitivo. É sentimento da espécie que sabe que sabe. Que sabe que vive, por saber da morte. Mas, perder-se nesse medo, desejando a morte dos outros, tem se mostrado cada vez mais atual. O novo vírus e o que fazemos com seus efeitos escancaram isso no fingimento de que a morte não existe. Ela é, agora, invenção, exagero. Não morre tanta gente assim...
Mas bastava uma morte. Bastava que morresse uma pessoa e a nossa batalha humana – técnica, comunicativa, reflexiva, cultural – poderia ter sido dada como em perdição. E nós sabemos que a perdemos todo dia. Não são necessárias quaisquer estatísticas mais, pois os números já são superfícies. O profundo está entranhado em nós, no gritante menosprezo à vida em cada atitude, comentário ou pensamento que sinaliza a exacerbação do desumano que hospedamos. Está nos pequenos detalhes e nos grandes também. Sim, o vírus escancara, mas temos sido assim há tempo demais. Nos rituais de luto, por exemplo, nossas marcas mórbidas estão bem presentes: há choro, mas também há riso – aquele de canto de boca, que diz: antes ele do que eu. Ficamos tristes, mas também felizes com a morte dos outros. No profundo, ficamos.
É o que acontece, aparentemente, frente aos que hoje morrem por causa do vírus. Afinal, só morrem as pessoas com comorbidades, com deficiências. Os obesos, diabéticos e idosos. Os pobres. Aqueles que não têm histórico de atleta. Porque, profundamente, entendemos que esses já deviam mesmo ter morrido. E escolhemos, aglomerados, brindar à vida, já que só se vive uma vez. Mas, a que vida brindamos?
Por isso, volto a Clarice para lembrar que, apesar de primitivo, o medo não nos é vocação – e Paulo Freire ensina muito sobre isso. Os primeiros homens e mulheres ou os hominídeos que possibilitaram nossa humanidade, quando estudaram o fogo e aprenderam – entre eles e ao longo de gerações – a mantê-lo aceso, nutriam a esperança de preservar a vida. De não precisar mais matar uns aos outros, roubar dos demais seus alimentos, suas vestes, seu futuro. De não mais precisar da guerra. E nós, homens e mulheres do presente? Temos a nosso favor outros tantos bens culturais além do fogo: alimentos produzidos em abundância, remédios e vacinas. Tudo o que possibilitaria, como nunca antes, a vida humana. Mas ainda temos medo, muito medo. Ainda festejamos a morte dos outros. Ainda nos sacrificamos, diariamente, para que seja possível não ver o óbvio: que nos defendemos atacando uns aos outros, por medo.
Pode parecer que eu esteja escrevendo em favor de alguma coisa como uma vida eterna – o que não é o caso –, mas continuo a favor do medo, à la Lispector. Do medo admirado, refletido e elaborado para que seja possível sonhar com um mundo sem ele, como queriam nossos primitivos antepassados e como nós ainda queremos, mesmo que isso esteja nos interstícios da nossa consciência. Para que seja possível sonhar, mas também pensar e agir, buscando a transformação do que existe de concreto em nossa sociedade e que nos condiciona a vivermos amedrontados.
Talvez pareça, também, que eu esteja indeciso entre a tragicidade da morte e o otimismo mágico de uma vida ideal. Mas não, ambas as perspectivas são possíveis e estão, hoje ainda mais, escancaradas. Defendemos a morte, mas resistimos pela vida. Rimos e choramos. Odiamos – buscando as pequenas diferenças em cada um –, mas também amamos – pelas mesmas diferenças. Na hora da morte, uma sensação estranha de comunhão nos invade, só não podemos esquecer que também ficamos aliviados por não sermos nós, ainda.
É preciso, então, que entendamos nosso medo, que insistamos nele. Afinal, por que recusamos as máscaras e aderimos às armas? Por que prezamos pela vida através da morte? Por que acreditamos sermos imortais mesmo com esse medo de morrer nos endurecendo? Por que alimentamos nossa dureza para conosco e somos tão duros, por consequência, com os outros? Por que jogamos para o fundo de nossa memória o fato de ser possível que todos possam sobreviver e viver? Diante da vida que é morte, sou a favor do medo que possibilite uma vida sem ele. Uma vida digna, de todos. Porque parecer mórbido ao escrever sobre essa vida que levamos é sinal profundo de que outra vida é possível.
[Lucas Ferreira Rongetta. Graduando em Psicologia pela UFSJ. 03 de novembro de 2020.]
*Faço referência à crônica “A favor do medo”, de Clarice Lispector, presente no livro “A Descoberta do Mundo” (1984). Também o poema “Congresso Internacional do Medo”, de Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro “Sentimento do Mundo” (1940) inspirou-me na escrita desse texto, assim como outras obras de intelectuais e artistas.
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