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Assaltos de vida

Atualizado: 29 de dez. de 2021



Depois de um mês de intubações, vivendo em coma com aquele pulmão artificial, o corpo não se mexe ainda que os olhos estejam atentos. Os braços são fracos e desengonçados. E a mente fica confusa. Eu não sabia onde estava nem há quanto tempo estava ali. Depois que a fisioterapeuta chorou ouvindo meu ‘bom dia’, logo após uma manobra na retirada do tubo, começamos novos tratamentos. Psicóloga e psiquiatra me visitaram diariamente perguntando meu nome, testes, explicações e me preparando para ver a família pela telinha. Fui lembrando da minha vida aos poucos, mas achei que muitos dos meus estavam mortos. Acordei uma vez arrancando tudo, saindo da cama, gritando que precisávamos todos sair no hospital já. Fugir porque os bandidos haviam entrado lá, matariam todos. Precisamos correr, eu dizia repetidamente. Me explicaram que era sonho, filme da noite anterior disse meu novo parceiro de quarto; e me acalmaram com sedação. Foram 90 dias no Hospital das Clínicas. Com o tempo fui identificando o tanto que sonhei, que vivi outra realidade por semanas. Minha mãe não tinha morrido num assalto, nem minha irmã perdido a mão. Falei para o assaltante que eu tinha dois corações, que eu não morreria ali. Ele atirou assim mesmo e eu continuei afirmando: não vou morrer mano, agora não! Tiveram outros assaltos sonhados. Eu e dois amigos da minha cor, todos músicos, estávamos desempregados e fomos assaltar em Los Angeles, chegamos num iate super sônico. Eu insistia que não deveríamos fazer aquilo. O outro começou a rezar antes da ação. A outra, a líder, reclamou que não dá para chamar Deus antes do assalto, e desistiu. Na volta pro Brasil, alto mar, chega um helicóptero para me resgatar: suba apenas o Zé preto disse a polícia federal! Visitei a casa de amigos durante este período hospitalizado. Casas que descrevi exatamente como eram e onde nunca estive. Outro sonho-milagre foi na minha Itália acompanhado do meu padrinho e da minha esposa onde enchemos taças em rios feitos de vinho tinto. Teve uma noite que achei que era a última. Janelas fechadas, um silêncio solitário rodeado de camas-colegas de quarto. Nesse dia faltou ar. Meu pulmão pulava no peito à procura de oxigênio. Era quase duas da madrugada. Acionei o chamado da enfermaria algumas vezes e nada. Desespero. Daí, um vento saiu da parede do teto. Uma ventania repentina sobre a minha cama entrou pelas minhas narinas. De manhã, a enfermeira disse que meu corpo havia dobrado o tubinho de oxigênio e que iria então tirá-lo pois eu havia conseguido ficar sem. Foram muitos chamados, uma noite longa, muitas mortes, relatou a enfermeira sentada ao meu lado. Pelo celular, minha mãe conta que acordou de madrugada e rezou muito soprando ar profundamente. O médico duvidou que eu era músico, que cantava e tocava violão. Mandou trazer meu violão de casa. - ‘Vamos ver.’ Eu nem conseguia segurar a colher para comer. No terceiro dia de violão na mão, já tínhamos uma enfermaria mais alegre e minha boa recuperação motora. Médico esperto, meu! Nas últimas semanas eu era chamado para fazer festinhas e vídeos de aniversário para os funcionários e pacientes. Ouvia uma enfermeira ligar para outro dizendo: - ‘ele é músico de verdade!’ Tenho marcas no corpo. Emagreci 22 quilos. Choro com facilidade. Voltei a viajar, subir no palco. E tenho muita gratidão pela equipe do HC.

[Narrativa colaborativa escrita depois do encontro com Zé Preto (nome fictício), músico de São Paulo e Cássia, professora mineira. 05 de novembro de 2021. Narrativas da Pandemia: Série Eu tive Covid-19. OBESC-NESC, UFSJ, 2021]].


Fotografia: Richard Neves (Origem)


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