Fotografia por Núbia Vale Rodrigues
Em março eu estava no internato de pediatria e tudo seguia normalmente, até que um dia chegaram com a notícia: paralização do calendário, do curso, do internato, pandemia. Não é exagero dizer que foi totalmente inesperado. No começo eu fiquei em São João junto com os outros colegas de casa e de curso, esperando alguma notícia, imaginando algo de muito menor proporção, algo muito longe dos moldes atuais. Depois do primeiro mês em São João, por questões financeiras e burocráticas, voltei para a casa da minha mãe e me vi de mãos atadas, fui fazendo minhas coisas, estudando aos pouquinhos, ainda esperando que as coisas se normalizassem. Foi passando abril, foi passando maio e a gente não tinha nenhuma perspectiva boa de volta, muito pelo contrário, a gente falava muito de achatamento de curva, de isolamento social e percebendo cada vez mais que as coisas não voltariam tão cedo ao normal, como ainda não voltaram.
Em abril mais ou menos, o governo federal lançou o programa Brasil Conta Comigo e também uma portaria autorizando a formatura com 75% dos alunos do curso de medicina. E aí todo mundo se inscreveu, mas ainda era uma coisa muito incerta, um plano B. Em junho recebemos um e-mail falando que uma cidade próxima estava recrutando muitos alunos. Eu tentei me inscrever, mas não consegui ser chamada nesse momento. E eu preciso confessar que foi um período muito estressante, até brinco que é um pouco de egoísmo, mas preciso ser sincera. Estava todo mundo no mesmo barco, todo mundo parado, porém quando as pessoas começam a ser convocadas, eu percebi que precisava me mobilizar.
Na época o ministério da saúde não tinha disponibilizado uma lista dos municípios que estavam com vagas abertas, então a busca era totalmente manual. Eu liguei para algumas cidades que eu conhecia tentando saber se tinha vagas, e foi muito estressante, foi um período que eu preciso dizer que foi um dos mais estressantes da minha vida. Só depois de muita correria, de muitos telefonemas, de muito e-mail, eu consegui abrir, realmente abri vagas na cidade que eu estou atualmente, e consegui trazer comigo alguns amigos da minha sala. Foi muito burocrático, já que a cidade tinha se cadastrado no programa, mas não tinha feito todos os trâmites. Tive que auxiliar pessoalmente, conversar com a Secretaria de Saúde, até que enfim deu certo.
Eu posso afirmar que quando cheguei me senti como um papel em branco, eu não vim com muitas expectativas, não sabia o que esperar de uma pandemia, uma situação jamais vista, jamais vivenciada por ninguém. No começo a gente não sabia o que iria acontecer, a questão dos testes, dos protocolos, da medicação, era um misto de excitação, de surpresa e de ansiedade, e de medo também, porque a gente tem medo, a gente tinha muito medo do vírus, de ficar doente. Por muito tempo eu deixei de ir em casa, de ver minha mãe, de ver meus avós que são muito idosos e que tem comorbidade, e sempre quando a gente chegava em casa havia protocolos muito rígidos.
Mas de certa forma posso dizer que me surpreendi, fui muito bem recebida, a cidade tem um SUS que funciona lindamente em comparação com SJDR e outras cidades que eu conheço, a gente recebeu material de EPI, e temos uma relação muito boa com a equipe. Por ser um momento difícil, de muita incerteza, de formar ou não formar, de quando vai voltar, quando não vai, estar numa equipe integrada, multiprofissional e tão bem consolidada, numa equipe que realmente trabalha unida, fez as coisas fluírem muito mais fácil. A experiência em si tem sido muito prazerosa e muito significativa na questão do aprendizado, pois não tinha contato ainda com a medicina de família, a minha UBS recebe muitas demandas variadas, e pelo número reduzido de alunos conseguimos ter uma supervisão com um acompanhamento bem mais próximo. E com o passar do tempo as coisas foram se estabilizando, a gente vai se acostumando com a situação, naturalizando o processo.
Eu acredito que falo por muita gente quando digo que nós não fomos preparados, o mundo não foi preparado para essa situação, mas nem acho que foi um erro da minha universidade ou das universidades, porque é uma situação jamais vista. O trabalho que eu tenho agora me preparou em relação ao vínculo médico-paciente que é muito importante porque esse é um trabalho fundamentalmente de prevenção, isso não se faz de um dia para o outro. Você precisa conhecer sua equipe, seu território, seu paciente, e muitas vezes a queixa que o paciente nos traz na consulta, a queixa principal, é o menor dos problemas. A gente tem que lidar ainda com muitas questões de vulnerabilidade, minha área até que é mais abastada, mas ainda assim tem seus problemas com drogas, com gravidez precoce, com violência doméstica, não é mil maravilhas, como tudo que acontece no Brasil, principalmente falando de saúde pública. Mas eu acho que a faculdade me preparou bem teoricamente e pelas experiências que a gente teve nas aulas teóricas e nos internatos que eu participei. Para a pandemia em si não tinha ninguém muito preparado, mas a gente foi descobrindo juntos no dia a dia.
Hoje, em outubro, as angústias que eu compartilho, acredito que sejam as de muitos dos meus colegas, porque apesar do governo ter falado que a gente vai conseguir usar essas horas para formar, tem acontecido muita burocracia, muitos entraves em como utilizar essas cargas horárias, como isso vai ser abatido, quando a gente vai formar, quando o calendário vai voltar. Às vezes eu acho que a coordenação busca as respostas que a gente precisa, mas talvez não com a urgência que a gente quer, que a gente deseja. Eu não sei se é uma ansiedade nossa, se é um entrave burocrático, não busco culpados, mas principalmente agora com as provas de residência chegando, com a antecipação da formatura de alguns alunos, tem sido bem angustiante. E agora eu estou terminando as horas necessárias de medicina de família e estou em busca das horas necessárias de clínica médica, então provavelmente eu vou ter que mudar de cidade. Acho que vai ser em algum lugar próximo, mas ainda está incerto, pelo menos agora já existe uma lista de vagas. Na próxima semana já é minha despedida, e aí vem mudança, custo financeiro, e incerteza.
Apesar de todas essas angústias, apesar de todo o processo burocrático, apesar de todas as incertezas, apesar do distanciamento da família, apesar dos nossos medos, para mim ser estudante em uma situação como essa, tentando fugir da demagogia da romantização, é muito importante, porque estar na linha de frente, como muitos falam, nos ensina muitas coisas sobre paciência, resiliência, e enfrentar nossas próprias angustias e medos, e de certa forma é muito gratificante você perceber que uma escolha que eu fiz lá em 2014 quando eu estava fazendo vestibular, está sendo, de fato, útil para a vida de alguém nesse momento. A gente não tem o CRM, não tem o carimbo, não assina, mas é muito gratificante perceber quando em uma consulta, numa escuta qualificada o paciente sai satisfeito. Mesmo quando a gente nem tem as respostas clínicas, na escuta, no vínculo, eu percebo que fiz uma escolha realmente acertada.
Narrativa construída em colaboração. O diálogo entre Francielly e Núbia é a base do texto. Francielly Ramos Araújo é estudante de Medicina pela UFSJ e participante do programa Brasil Conta Comigo e Núbia Vale Rodrigues é estudante de Psicologia da UFSJ e integrante dos projetos OBESC, NEGAH, NESC e Entre Idas e Vindas. 16 de Outubro de 2020.
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