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Nesc

O peso da caneta



Escrever é dolorosamente transformador. Ou, ao menos, deveria ser. Em mim, que busco minimamente me comprometer com a possibilidade de um outro mundo, o que acontece depois do ponto final é uma mistura alívio e desespero. Alívio porque me descobri e organizei, porque fui potência, porque resisti. Desespero porque meu íntimo foi revirado e porque, ao fim, o mundo ainda parece o mesmo. Mas talvez não seja.

Eu sinto que o mundo mina meus sentidos e sensibilidade a todo momento. A fantasia também carrega um alvo por onde ainda consigo carrega-la. Preciso lutar o tempo inteiro para conseguir parar, me conectar, para verdadeiramente estar presente, sair da crise de ausência. A luta contra a captura é constante. Perco mais batalhas do que gostaria de admitir. Escrever é tentar, por alguns momentos, experimentar novos modos de ser e estar no mundo.

A palavra sempre expressou meus conflitos. Tudo que eu escrevo sai ao mesmo tempo de mim e do mundo. São as palavras que me permitem falar sobre ele. E sobre mim. As defesas ruem e eu também não passo ilesa. O processo me faz encarar o desamparo, ao invés de continuar tentando correr incessantemente dele. E é por escrever ser uma forma de dizer— ou gritar— não, que o ato se torna potência. É por clamar por justiça, recusando a violência, por permitir que entremos em contato.

Não é fácil digerir as minhas mazelas, nem as da realidade. Mas é por isso que preciso resistir. É pela sensibilidade que ainda me resta, pelo que ainda consegue me tocar. Pelo que o mundo ainda não roubou de mim. Quando nos deparamos com a barbaridade que assola a todos nós, fica difícil retornar ao conforto anterior. Então encaro a dor, e tento agir. Ajo buscando ter sensibilidade na medida certa para não me paralisar, nem me acomodar. Mas nunca fui boa com equilíbrios. No meio de tanto conflito, tento acolher a mim e ao que me faz despertar para os perigos que me envolvem, para o que me tira da paralisia. É difícil encontrar lugares que acolham esse sabor amargo na boca que a acidez do mundo causa. Mas a escrita tem esse poder. Ela é capaz de representar um desajuste, uma linha de fuga.

Mas isso tem suas consequências. A linha é tênue entre perceber o mundo como ele é e cair num desencantamento profundo acerca da vida. Às vezes caio. É difícil levantar. E talvez o mais difícil seja acolher os sentimentos que surgem diante disso e reconhecer sua necessidade. Talvez seja difícil contemplar tudo isso sem perder o toque do que ainda existe de encanto e beleza. Mas é preciso. Porque aprendi que é justamente onde cresce o perigo que também vive o que salva. E quando fica difícil respirar em meio à tudo, é aí que vive minha potência, no breve momento em que eu sinto que as brechas, mesmo que pontuais, foram vividas, ou criadas. Em que saí do modo avião. Desviei.

Sigo escrevendo porque tenho medo de não agir e me tornar cada vez mais parte, menos eu, mais todo, mais do mesmo. Temo estimar a devastação. Me tornar aceitação incondicional do inaceitável. Quero marcar e ser marcada, sentindo meu caminho com todo meu corpo, encontrando tudo o que puder. Quero despender meu “sangue, pus e suor”, colocar minhas “tripas no papel”. Há sempre muito a ser dito e a ser criado. “Largando linhas pra nem morto ser calado”, canta o rapper mineiro Djonga. Que a escrita seja nossa máquina de guerra. Máquina que tem um enorme poder de construção.


[Clara da Mata Anselmé, estudante de Psicologia da UFSJ. Extensionista no ABRASUS e no Programa OBESC-NESC. São João del-Rei, 19 de fevereiro de 2021.]


Fotografia: Mathilde Langevin (Banco de imagens Unsplash)

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