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Café da tarde

Atualizado: 21 de out. de 2020

Fotografia de Nataniel Kaoru, acadêmico da UFSJ. Mais fotografias podem ser encontradas em seu instagram @natakaoru.jpeg.


Dona Maria tem setenta anos e vive numa cidadezinha do interior de Minas. Sempre que conversamos por telefone me oferece um café e torce pelo dia em que vou poder aceitar. Dona Maria parece viver de café, crochê e oração. Remédios, também toma muitos remédios. Tem para pressão, coluna, ácido úrico, tem até um para depressão leve, foi assim que o doutor chamou. Ela queria cortar o do ácido úrico, mas o médico disse que ela teria que parar de comer carne. Preferiu continuar com a pílula. O da depressão nem se lembra quando começou a usar, contou que às vezes não tinha vontade de botar uma roupa bonita. Com a pandemia, a ansiedade aumentou muito, muito mesmo. Principalmente porque sua irmã Joana é enfermeira no hospital mais famoso do país. Ela tinha certeza de que a irmã não sobreviveria a essa. Me conta que Joana evitava de conversar sobre essa questão, mas desabafou com a filha de Maria. A verdade era que estava apavorada. Um irmão faleceu recentemente e agora os três sobrinhos moram com ela. Voltar para casa é um pesadelo. “E se eu contaminar a pequena?”. Mas Maria conta do alívio que sentiu quando a irmã lhe disse que os casos pararam de aparecer em sua ala e que os profissionais que haviam se infectado já haviam se recuperado ou voltado ao trabalho. Maria tem confiança de que o que a salvou foi a oração que enviou para Joana nos primeiros dias da pandemia. Chamada Estrela do Céu um dos versos diz “o senhor afugentou a peste”. Em contrapartida, na mesma semana, um filho de Maria que trabalha em uma indústria na cidade próxima, contou que um funcionário com o qual dividia posto de trabalho foi diagnosticado. Pergunto se ele também será testado e Maria me diz que não, a empresa disse que não precisava. Compartilhou a mesma oração com o filho e segue com fé.

No mesmo dia ligo para seu Pedro, um mototaxista de sessenta anos que estava a ponto de preparar seu café. Ele diz que agora faz dois trabalhos: transportar passageiros e conversar com os passageiros. Me conta que conversar é uma necessidade humana e que ficar em casa está gerando uma espécie de pré-depressão no povo. Narra o caso de Lúcia, uma faxineira do hospital da cidade com quem conversou dias atrás. Relata que a mulher está muito mal, o filho se mudou para a casa do pai, e agora está sozinha em casa dia após dia. Se entrega à bebida algumas noites, e não consegue suportar mais a solidão e o medo. “Olha o desgaste”, diz seu Pedro. Conta também das equipes médicas que estão se hospedando em hotéis para não voltar para a casa e correr o risco de infectar as famílias. Ele questiona se vale a pena mesmo. Fala que a vida é muito curta para se viver com medo. Tem vários pensamentos conflituosos. É uma mistura de vida tentando seguir normalmente com um pânico que se instala como parasita. Ou como vírus. “Que coisa né, um bichinho que a gente nem enxerga mexeu com tudo, tirou o trem do trilho”.

Acho que a vida se descarrilhou há muito tempo. Desde que a depressão leve virou rotina, desde que a empresa passou a valer mais que o funcionário, desde que a fé virou o único consolo aparente, desde que a conversa com o motorista e as ligações interrompendo o café da tarde viraram desabafo. Abafados estamos ainda mais agora. Honestamente, eu queria ter respostas para dona Maria e seu Pedro, mas por enquanto eu só sigo ouvindo, ouvindo com a garganta engasgada. Vou para a cozinha fazer café e levo o telefone comigo, quem sabe alguém também não me interrompe do afogamento.


*nomes fictícios foram usados nessa narrativa


[Narrativa construída em colaboração. O diálogo entre Maria, Pedro (nomes fictícios) e Núbia é parte de histórias coletadas em entrevistas produzidas no OBESC e serve de base para o texto. Maria e Pedro são moradores da Região das Vertentes de Minas Gerais e Núbia Vale Rodrigues é estudante de Psicologia da UFSJ, integrante dos projetos da UFSJ Observatório da Saúde Coletiva (OBESC), Núcleo de Estudos sobre Gênero, Raça e Direitos Humanos (NEGAH) e Entre Idas e Vindas. 22 de junho de 2020]


Como citar: RODRIGUES, Núbia, Maria e Pedro. Café da tarde, publicado em 30 de setembro de 2020. Disponível em: https://saudecoletiva.ufsj.edu.br/



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