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Nesc

Caminhos cruzados


SÉRIE “A MÃE DO OURO”

Em exibição no Solar da Baronesa, na exposição Confidências da Terra, de Zandra Miranda.

Cerâmica de alta temperatura com depósitos de vidro fundido e aplicações de ouro líquido.

Foto de Ricardo Coelho

2020


A cada dia que passa percebo um contingente maior de pessoas que, ao cometerem um erro descarado, simplesmente não se desculpam. Chego a pensar que pessoas assim consideram que se admitirem uma falha e pedirem desculpas, perderão com esse gesto a credibilidade de toda uma vida. Não conseguem ou não querem ver a situação como pontual. Desse mal não padeço. Tenho inúmeros defeitos , uns de fábrica, outros adquiridos com o passar dos anos, mas não tenho dificuldades em me desculpar, quando reconheço meu erro. Já pedi desculpas por erros até que não cometi, pela manutenção da paz em um relacionamento. O que depois descobri ser improdutivo e inadequado, pois apesar da boa intenção do gesto, a situação se voltou contra mim. Isso não faço mais. Um pedido de desculpas sincero sempre terá um lugar reservado no meu coração, mas não tenho muitos candidatos à vaga.


Um desses raros pedidos aconteceu há muitos anos atrás, quando estive em Paris. Eu caminhava pelas ruas tão encantado que me assustei ao levar um pequeno esbarrão dado por um transeunte que cruzou meu caminho. Ele imediatamente me tocou de leve no braço e disse:”- Pardon!” Não me lembro se era gordo ou magro, alto ou baixo, feio ou bonito. De qualquer forma aquele momento foi pra mim inesquecível. Ele ao se dirigir a mim me tirou de um estado de transe no qual vivia há semanas. Como eu não dominava a língua que falavam ao redor, caminhava sozinho dentro de um universo de reflexões e impressões do que eu observava, e que me conduziam pra um mundo paralelo. Ele me trouxe para o presente. Minha primeira sensação foi de espanto por perceber que ele me via, enquanto eu me considerava invisível, um espectador de um filme que só eu assistia. Ele mostrou que eu também fazia parte daquele cenário tão espetacular pra mim. Ele me transformou por me acordar para a realidade, mas também pelo calor do toque da sua mão no meu braço. Aquela sensação me trouxe a percepção, que eu não tocava nem era tocado por ninguém há muitos dias. Como agora, durante o isolamento social. Há meses não sinto o toque humano. E o mais estranho é que parece que sempre foi assim. Pelo menos por enquanto não sinto mal por isso. Justo eu que sempre fui tão tátil com amores e amigos. Se tenho dificuldade em guardar nomes e datas, tenho uma memória impressionante de pele, de tato. Saberia descrever quase todas as pessoas que toquei ou fui tocado com intimidade. Inclusive do parisiense que sequer guardei os traços. Lembro ainda hoje precisamente onde sua mão tocou no braço direito, próximo ao cotovelo e do seu pedido de desculpas. Graças a ele guardo pra sempre um pouquinho de Paris dentro de mim. O que ele nunca vai saber é o quanto lamento não ter dito a eles pelo menos duas palavras que eu sabia: - “Merci beacoup!”


O relato "Caminhos cruzados" faz parte de uma série chamada "Diários Ordinários" e está disponível no youtube no link :https://www.youtube.com/watch?v=3eaF1oVBRdk



[Fernando Campos Maia. Julho de 2020]



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