“Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo…”
Oração ao tempo, canção de Caetano Veloso²
Passado, presente e futuro são abstrações que criamos para orientar a nossa experiência vivida nesse espaço-tempo em que nos encontramos. O tempo é sempre relativo a essas abstrações e aos períodos dos fenômenos que experienciamos. O tempo pode ser nosso aliado, nosso instrumento de crescimento e também nosso maior carrasco. Mas definitivamente o tempo é inexorável perante a nossa frágil existência humana.
Tempos remotos da minha infância foram marcados por casas de avós, com muitos tios, tias, primos, vizinhos, parentes e amigos. As mesas para o almoço de domingo sempre foram pequenas para tanta gente, diferentemente das panelas sempre cheias de comida feita com muito carinho e afeto. A vó Dorinha dizia sempre que o tempero era o amor. O vô Affonso sempre recordava das lembranças vividas com o seu avô: na mesa sempre tem que ter vinho, pão e azeite, dizia ele ao vivenciar comigo a experiência de almoçar todos os dias com seu avô. O vô Celso nunca dispensou a pinguinha antes do almoço e a goiabada após a refeição. A vó Lídia e suas batatinhas cozidas na panela de ferro sempre fizeram sucesso na família. Uma das minhas memórias afetivas favoritas é o cházinho de hortelã que a vó Lídia fazia.
O tempo foi muito generoso comigo. Não posso reclamar nesse sentido. Já mulher feita e independente, compartilhei e ainda compartilho de muitos momentos de afetos com minhas avós. Meus avôs se foram nos últimos meses. Deles guardo muitas lembranças boas, muitos conselhos e muito afeto. Vô Affonso, neto de italiano imigrante, filósofo por natureza e cozinheiro por paixão, aprendizados herdados de seus avós. Vô Celso, um tanto quanto teimoso e inventor, plantou batatas e lavrou a terra. Dois homens sábios e que transcenderam a função de avôs e se tornaram pais presentes na minha vida. Já dizia sabiamente a Vô Dorinha: se vó é mãe duas vezes, então vô também é pai duas vezes. A lógica era vivida no nosso cotidiano, sempre compartilhada com muito afeto. A Vô Lídia também se refere ao meu Vô Celso como meu pai, quando conta os pequenos e efêmeros acontecimentos cotidianos.
“Mas entendi a poesia da Sua Vida. Você está certo, companheiro. Só estamos aqui para cantar e viajar” disse o poeta Ricardo Balieiro³. Eu vivenciei a poesia dessas vidas, pelo menos por toda minha existência e por um terço da vida destes, que partiram com mais de noventa anos. Que alegria, que alegria ter tido meus avôs por todo esse espaço-tempo vivido com tanto afeto e construção de saberes trocados. E se eu pudesse mandar algum tipo de mensagem a esses velhos que cuidaram de mim por toda minha vida, emprestaria as palavras de Gonzaguinha4: “Eu apenas queria que você soubesse. Que aquela alegria ainda está comigo. E que a minha ternura não ficou na estrada”.
Compositor de destinos, como disse Caetano, o tempo pode ser diferentes coisas na trajetória de cada pessoa. Vô Affonso foi levado pelo tempo, nossas últimas conversas já tinham tom de despedida. Vô Celso foi levado pela Covid-19. Difícil de aceitar, difícil de acreditar. O tempo nesse caso foi vilão, mas não o tempo como enredo de vidas, mas o tempo da vacina chegar, o tempo do cuidado e o tempo em que deveria ter sido investido no combate à Covid-19.
O processo de luto envolve algum tipo de contrariedade, raiva e tristeza. Ao redigir essa narrativa transformo todos esses sentimentos em vontade de viver como meus avós viveram. Vidas cheias de amor, afetos, crescimentos, erros e acertos. E carrego comigo as palavras do meu vô Affonso, temos que viver com alegria. E com a alegria de quem teve o privilégio de crescer com tanto amor, tento devolver ao tempo e ao mundo esse amor que me impulsiona e me movimenta.
São João del-Rei, 12 de abril de 2021
Lidiane Campos Villanacci, graduanda em psicologia e uma neta apaixonada por seus avós.
¹ Narrativa apresentada para a disciplina optativa Narrativas e cuidado em tempos de isolamento do curso de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei.
²VELOSO, Caetano. Oração ao Tempo. 1979. (3m 37s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=HQap2igIhxA>. Acesso em 11 de abril de 2021
³Balieiro, R. Carta aos amigos. Editora Independente. 1998
4Gonzaguinha. Eu apenas queria que você soubesse. 1987 (2m 30s). Disponível em <https://www.youtube.com/watch?v=Q4H5x8ScDLs> Acesso em: 12 de Abril de 2021
Foto: arquivo pessoal da autora.
Comments