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COMIDA E ARTE NA QUARENTENA


""Desejo", de Fernando Campos Maia. Mais obras do artista podem ser encontradas no Facebook: Atelier Virtual - Fernando Campos Maia ou no Instagram: @fernandocamposmaia".


Sou do século passado e os momentos atuais ressuscitaram em mim os idos da década de 1980, quando eu contava 7 anos de idade e estava na antiga primeira série do Primeiro Grau. Naquele tempo, houve um surto de hepatite na minha terra natal, Jeceaba, após uma das muitas enchentes que assolam a cidade há décadas. Eu morava em um sítio com meus pais e meus irmãos, pertinho da casa de minha avó e tia queridas. Contraí hepatite e tive que ficar 45 dias isolada, de cama e com dieta rígida, conforme as orientações médicas da época. Tinha o direito de comer apenas biscoitinhos de água e sal e arroz branco, sem tempero algum. Era obrigada a beber litros de chá de picão e muita água. Eu sentia muita dor e vomitava muito, tinha medo e pensava que ia morrer. Sentia muita, muita saudade da escola, especialmente das brincadeiras. Desde os cinco anos de idade, eu passava por problemas com a alimentação. Todo dia era uma luta na hora do almoço, minha mãe tentava me incentivar a comer, mas eu resistia, ela perdia a paciência. Na escola, na casa da minha tia, com meu pai, eu comia. Na presença de minha mãe, um nó tomava conta da minha garganta, os almoços eram momentos de grande angústia, vontade de chorar um choro que não saía, a garganta travava, a comida rodava na boca e não descia. Almoço era sinônimo de tortura e até hoje não sei precisar o que deflagrou isso em mim. Fato é que, com o jejum de 45 dias imposto pela hepatite, eu saí da convalescência com tanta fome que aprendi a comer. Aqueles 45 dias foram uma experiência absolutamente transformadora para minha pequena idade. Experiência profunda, no sentido atribuído por Jorge Larossa, “aquilo que fica marcado em nosso corpo, como uma tatuagem”. Hoje, em 2020, não tem sido fácil viver a história vivida, ser testemunha de um momento crítico para a humanidade. Aqueles sentimentos adormecidos da infância voltaram, agora, com outros significados, iluminados pelo presente. Penso na minha mãe, já falecida, penso em nossa relação. Perdoo a impaciência de minha mãe, sinto saudade do quibe, do bacalhau, dos figos em calda, do prato de mingau de fubá com couve para retirar a friagem do corpo. Tenho um filho que fez 7 anos em abril e uma filha que fez 3 anos em maio, penso na mãe que tenho sido, na mãe que gostaria de ser. Estamos protegidos, em nossa casa, com nosso quintal, nossos salários, computadores, celulares, acesso à internet e tudo mais que precisamos para viver, trabalhar e estudar com conforto. Sou grata à vida que temos. Cantamos parabéns com bolos de aniversário produzidos por nós mesmos, alguns poucos membros da família participando via chamada de vídeo. A socialização com os coleguinhas da escola faz muita falta para as crianças e elas ficam ansiosas. Para ocupar a vida com prazer, temos produzido comidas e artes, em forma pinturas, desenhos, bichinhos de argila, mas sobretudo arte em forma de comida. Penso nas pessoas que estão passando fome e fico angustiada, tentamos agir para ajuda-las a ter o que comer, ensinar para as crianças que é importante dar a mão a quem tem menos do que nós. Fiquei meses sem ir ao supermercado, meu marido era quem saía uma vez por semana. Em agosto, na primeira vez que voltei a fazer compras, fiquei tão nervosa, com tanto medo de me contaminar, que nem respirava direito. Chegando na seção de hortifruti, foi estranho e emocionante ver as melancias, berinjelas, mexericas e suas cores intensas. Peguei um repolho roxo e me emocionei com aquelas nervuras nas folhas, tão lindas. Fiquei ali alguns minutos me acalmando com um repolho roxo nas mãos, escrutinei vários, escolhi criteriosamente. Os repolhos eram tão grandes, o que fazer para não desperdiçar? Fiquei em dúvida se deveria mesmo comprar, não gosto de jogar comida fora. Mas voltei para casa com o repolho roxo e fiz charutinhos pela primeira vez na minha vida. Mandei fotos para os amigos, a mãe de minha amiga, que é libanesa, viu a foto e aprovou. Que vitória! Senti orgulho de mim mesma. Continuamos aqui, dia após dia, os finais de semana já não são tão diferentes dos dias de semana e vamos seguindo, praticando a boa mesa. Sobremesa liberada todos os dias, sorvete, charlote de morango, pudim, chocolate. Já fizemos muitas receitas, lembrando de pessoas que falecerem, sabores de viagens que fizemos, de amigos que não vemos há muito. Sem exagerar e evitando jogar comida fora. Quase tudo pode ser reciclado numa cozinha e eu me esforço para isso, cada vez mais e assim segunda-feira virou o farofa’s day. Tem muita gente passando fome por aí, repito isso para as crianças. Come sem reclamar! Agradece a comida que temos! A gente trabalha tanto para colocar comida na mesa! Vou envelhecendo cada vez mais parecida com minha mãe. Nunca imaginei repetir essas frases... Guardamos as cascas e folhas que não comemos para las muchachas (as minhocas de nosso minhocário). Esses restos, depois que passam pelos corpos esguios das muchachas, vão para nossa pequena horta e retornam para nós, em forma de folhas, temperos, chás. Certamente nossas muchachas são mais bem alimentadas do que muitas pessoas que vivem nesse mundo afora e isso me assombra. Eu tento ensinar minha filha a comer folhas, digo para ela: come a couve, é a folha que a muchacha mandou para você! Ela acredita e come. As brincadeiras nos ajudam a vencer e ampliar o cardápio. Fazemos bolos, canjica quentinha, pão de queijo, pipoca doce, piquenique na grama do nosso pequeno quintal. Um dia fomos até almoçar fora: colocamos uma mesa debaixo do pé de limão, meu filho fez bandeirinhas coloridas de papel de seda, forramos a mesa com uma toalha xadrez e o almoço virou uma festa. Tentamos deixar a tensão lá na rua e poupar as crianças. A ignorância às vezes é uma bênção e me lembro do filme “A vida é bela”. Muitas foram as fornadas de biscoitinhos, mas agora nossa padaria anda meio parada. Vou fazer um bolo ainda hoje e vai ser de chocolate. Meu marido inventou uma gelatina gourmet, de duas cores, com maçã picadinha e estrelas de carambola, maior capricho, um céu de comer. Fico feliz de ver que meus filhos já tiveram maiores dificuldades para aceitar alimentos, já rejeitaram, fizeram pirraça, cuspiram, mas aos poucos vamos ensinando a comer um pouco de tudo. E, mais que isso, que cozinhar é terapêutico, é curativo, que muitas comidas nos oferecem mais do que nutrição para o corpo. Nutrem nossas almas, falam com múltiplas vozes, ultrapassam tempos e espaços. São passadas de geração a geração, por meio daqueles maravilhosos cadernos de receita manuscritos, com folhas amareladas e respingadas de ovo. Fizemos o lendário capeletti in brodo. São dois dias de trabalho para chegar a um prato que é uma perfeição. Quem já comeu esse original capelete sabe do que estou falando. Massa caseira em forma de chapeuzinho, macia, com textura de nuvem, recheada com lúdicas bolinhas de queijo ralado e aromatizados com muita, muita noz moscada. Os chapeuzinhos vêm dançando em caldo quente-quentíssimo, com sabor de frango, carne de boi e legumes. É puro conforto, uma sinfonia de muitas coisas harmonizadas lentamente. Cura tudo, qualquer resfriado, desconfio de que pode ajudar a curar até Covid-19 (kkkk). Receita da família de meu marido, que está nessas terras mineiras desde o final do século XIX, quando Belo Horizonte precisava de muitos tijolos da Olaria Pezzi para ser construída. Chegou aqui quando o Sr. Josué se casou com D. Lola e a receita foi passada para seus filhos, dentre eles a Agripina. Todos já se foram, mas o capelete e o rim de D. Agripina, que foi transplantado para o corpo de meu sogro, continuam aí. O rim tem 107 anos, o capelete remete a tempos perdidos, imemoriais. É uma daquelas comidas que não adianta passar a receita por escrito. Para aprender, tem que acompanhar a feitura algumas vezes, tem que colocar a mão na massa e sentir com o corpo inteiro, cheirar o caldo para saber se está bom de sal. O cheiro da casa muda quando se faz capelete, o clima muda também, a gente começa a cantar. Quando meu marido e eu resolvemos morar juntos, logo a família dele veio nos visitar, trazendo uma daquelas maquininhas de abrir massas caseiras como presente de casamento. Além da maquininha, veio com eles o saber-fazer e esse foi, no meu entender, o grande presente. Entendi que eles estavam abrindo uma porta para mim, compartilhando sua história e seus sabores. Eu deveria seguir aquela tradição, mesmo sendo de fora, tendo outro sangue. Fizemos a receita algumas vezes juntos, naqueles tempos em que era possível receber visitas sem temer a morte. Neste ano de 2020 completamos Bodas de Estanho e nunca havíamos feito capelete sozinhos, mas nessa quarentena arriscamos e conseguimos. Hoje podemos repassar esse saber ancestral para nossos filhos. Eles já sabem comer e, caso aceitem a herança e queiram aprender a fazer, poderão dar continuidade à tradição. Tenho esperança de que um dia poderemos receber visitas novamente, produziremos os capeletes com nossos amigos e depois nos sentaremos para apreciar essa arte em forma de comida, para compartilhar algumas histórias que temos vivido nesses duros tempos.


[Christianni Cardoso Morais. Professora do Departamento das Ciências da Educação – DECED/UFSJ. 08 de outubro de 2020]

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