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Conversa de corredor

Fotografia de Nataniel Kaoru, acadêmico da UFSJ. Mais fotografias podem ser encontradas em seu instagram @natakaoru.jpeg.


Enquanto aguardo com minha mãe na sala de espera do consultório, no corredor uma mulher loira se aproxima. A recepcionista de cabelos encaracolados prontamente deixa seu posto para recebê-la, a visita de uma amiga talvez, penso. Ambas usam máscaras de pano preto, a recepcionista diz em voz alta, “posso te abraçar?” e logo se joga no encontro com a moça. Imediatamente reprimo a ação em meu pensamento, abraços na pandemia foram abolidos. Mas escuto uma voz embargada e o que parecia choro. “Meus sentimentos”.


Começam a conversar sobre como tudo aconteceu. Aparentemente foi o pai da loira que se consultava com o médico do consultório no qual eu estava. Um câncer, muito grave e raro, como o profissional havia descrito. Porém, parecia ter havido grandes melhoras nos últimos tempos, todos estavam otimistas. Vinte dias atrás o homem foi internado, água no pulmão, muita dor. A filha diz que três drogas não o sedavam, era muito forte, mas se estabilizou. Tudo parecia seguir melhorando, dias atrás ela queria visita-lo, já fazia uma semana que não o via, mas a psicóloga do hospital não a permitiu, disse que somente em casos terminais estavam aceitando visita frente à pandemia. No dia seguinte, num susto de madrugada, recebe o telefonema desacreditada, parada cardíaca, óbito.


O choro volta um pouco, a recepcionista segue chocada com o narrar da notícia. E se inicia o consolo religioso. O homem descansou, Deus o guiou, Deus nos dará forças, temos que ter fé. A funcionária cita o caso de outro alguém que teve infecção hospitalar grave e se recuperou, este dizia que ele era prova do poder de Deus se alguém duvidar. Se a morte aconteceu, era porque deveria ser assim. A loira acena concordando, “a vida é um mistério”.


Comenta então do seu filho, criança, que desde que o avô foi internado se abalou muito. Depois da morte segue dizendo que “esse corona levou meu avô”. Passa os dias dormindo agora. A mulher tenta parecer bem para ele, e diz que segura até a noite para chorar sozinha no quarto. Lembra que o pai deixou um seguro de herança que ajudará a família. Conta também da mãe, esposa do falecido, “ela se transformou”. Diz que a senhora está querendo muito desabafar e que quer conversar com o doutor um dia para tentar entender o porquê.


Encaro o céu nublado. Tentar entender o porquê. A angústia das perguntas irrespondíveis, o buraco deixado no mundo onde o luto não permite nem abraço, nem velório, nem gente querida reunida. Penso nos choros agarrados na garganta, enclausurados em quartos solitários, escapados em sonhos de sonos pesados. A pandemia contaminou até a conversa de corredor. Minha mãe é chamada. Enquanto me levanto, sussurro baixinho um “meus sentimentos”. É, ela é mesmo um mistério. O abraço está perdoado.


[Núbia Rodrigues. Estudante de Psicologia da UFSJ. 21 de junho de 2020)


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