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Nesc

Das incontáveis “seja bem-vinda”

Fotografia de Nataniel Kaoru, acadêmico da UFSJ. Mais fotografias podem ser encontradas em seu instagram @natakaoru.jpeg.


Hoje, por volta da 4h da manhã, a medicina me disse mais um “seja bem-vinda”. Ao longo desses 6 anos da graduação, houve vários “bem-vinda”. Bem-vinda à UFSJ, bem-vinda a São João del Rei, Barbacena, Oliveira...ESFs Senhor do Montes, Guarda-Mor, Bom Pastor, São Sebastião da Vitória, Colônia, Tijuco, Bela Vista, CAPS, Núcleo de Saúde Mental, Núcleo Materno-Infantil, Hospital das Mercês, Ibiapaba, Fhemig, Hospital São Judas Tadeu...foram tantos lugares, tantas pessoas...tantos diários, relatórios, provas, trabalhos, conflitos, amizades, risadas, bares, bebidas, festas, almoços, reuniões, encontros, resumos. Tanta história.

Mas hoje, foi a que eu mais temia, da qual mais queria distância, a que mais tarde queria que acontecesse. Hoje, pela primeira vez, estive presente ao comunicar a uma pessoa que seu ente querido havia falecido. Foi de madrugada, no meio da enfermaria, todos paramentados com EPIs...a pessoa com quem falávamos também era nossa paciente. Ela está na enfermaria, ele estava no CTI. Há 13 anos haviam se casado, há 8 tiveram o primeiro filho; há 5 o segundo. Estavam, ele e ela, com diagnóstico de Covid. Ambos trabalhadores que não puderam simplesmente ficar em casa e se cuidarem. A distância física, matemática, concreta e passível de medição, entre eles era de um corredor, ainda em obras, escuro, cheio de poeira e material de construção. A distância que realmente os separava era minimizada no boletim médico das 13h; a equipe do CTI ligava para ela, mas não sabiam que ela estava internada, a um corredor de distância. A distância que agora existe é inexplicável, seja pela lógica, filosofia, fé, razão, emoção... nada, nem ninguém explica ou define essa distância irreversível, definitiva.

O médico do CTI deu a notícia. Eu e a enfermeira contamos, amparamos, olhamos nos olhos verdes da viúva e os vimos ficar vermelhos de choro. Foi em mim que ela buscou um abraço, querendo quase que se agarrar a algo que a tirasse dali, que falasse que tudo aquilo não havia acontecido. Fomos eu e a enfermaria que ouvimos a nossa paciente repetidamente dizer: “não o meu marido, o meu melhor amigo...o amor da minha vida, não ele Deus...por favor, não ele! ”. Ficamos nós duas procurando alternativas e meios até conseguir levar a viúva ao necrotério para que ela pudesse se despedir do corpo, que há algumas horas era o marido.

Apesar de nunca termos conversado sobre religião, oramos junto com ela a oração que ela quis para se despedir do marido e que dentro da fé dela traria o conforto em saber que seu amado foi bem recebido por Deus e Nossa Senhora. Nas palavras dela “Mãe, por favor, me ajude e cuide dele, porque agora eu não posso mais. Agora eu não posso mais”. Além de no momento não poder ter velório e cerimônias semelhantes, ela não poderia deixar o hospital para estar presente no enterro, por isso o esforço para que ela tivesse um momento de despedida. Duvido que aqueles breves minutos para uma despedida tenham sido suficientes para trazer um conforto, mas ao menos tentamos fazer algo para minimizar a dor da perda naquele momento.

Eu sei que não fomos nós as responsáveis pela morte do marido dela, mas a impressão que ficou é que nós destruímos com o mundo dela, nós que tornamos a morte dele real para ela. Imagino que mesmo que me esqueça dos nomes e rostos deles, a sensação de hoje nunca poderá ser esquecida. Lembro que em outro momento, nesse mesmo hospital, também acompanhei um casal que lidava com uma morte, daquela vez foi uma perda gestacional, em primeiro trimestre. A diferença é que a perda do filho realmente foi inevitável, apesar de toda a tristeza e dor, ali realmente não havia nada a ser feito pelo filho. Esse marido, que hoje faleceu, ao menos deveria ter tido o direito de poder ficar em casa, cumprimento com o distanciamento social de forma adequada, segura e digna. Há sim mortes inevitáveis durante a pandemia, mas como saber qual o caso dele, uma vez que perdemos o parâmetro entre o que deveria ser feito para proteger as pessoas e o que realmente vem sendo feito.

Os pensamentos são muitos, mas não há o que consiga escrever. Fica a dor, a tristeza, a impotência, a limitação, a empatia...ficam na memória os sons do choro, as imagens dos olhos, a sensação daquele abraço. Descansar e dormir foi difícil. Imagina para ela...como será dormir sem ele?

Nada podemos fazer no momento, a não ser dar tempo ao tempo. Para todos, para ela, para as famílias, para os profissionais, para a pandemia. Torcendo que mais vidas sejam poupadas e menos viúvas precisem reaprender a dormir. Para que menos profissionais façam parte do “seleto” grupo que já comunicou uma morte pela Covid. No Brasil, já foram mais de 100 mil desses comunicados. Contamos as vidas perdidas, mas diria ser impossível calcular quantas vidas precisaram ser readequadas por causa das vidas perdidas. São incontáveis perdas. Incontáveis.


[Inara Pelichek, 05 de agosto. Oliveira/MG]



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