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O amor nos tempos de COVID-19 Para Alice


Fermina Daza, em meio ao alastramento de uma epidemia de cólera, seria também acometida pelo distanciamento em relação à pessoa pela qual estava apaixonada, o qual perduraria por cinco décadas. A prima, Hidelbranda, com uma concepção universal do amor, considerava que qualquer coisa que ocorresse com uma pessoa afetava todos os amores do mundo inteiro (MÁRQUEZ, 1985). Nos nossos atuais tempos do cólera, a percepção acerca do sentimento de amor sofreu intensas modificações, e os amores, que de tão nossos se tornaram cada vez mais de todos.


Quando foram divulgadas as primeiras notícias a respeito de uma nova doença infecciosa, não acreditei que fosse algo que pudesse acarretar tantas alterações em nossas vivências. Em tese, a princípio, o amor à vida como ela era prevaleceu. Ou ao menos, o amor à vida como eu desejava que deveria ter sido embora, de forma mais rápida do que pudesse assimilar, já estivesse em casa, longe do ambiente escolar, no qual passava grande parte de meu dia, e cada vez mais distante das pessoas que faziam parte do meu cotidiano.


Os primeiros falecimentos em decorrência da COVID-19 no Brasil, poucos meses antes de que vivenciasse esta mesma experiência em minha própria família, impactarem-me de forma muito significativa. O isolamento estava iniciando o seu período mais crítico, quando sentia que, de certa forma, estávamos mais conectados do que nunca. Somente poderíamos estar bem se todos estivessem bem, embora não permitam que haja meios para que todas as pessoas estejam simultaneamente bem nesse mundo. Inicialmente, faltavam itens básicos de segurança nos estabelecimentos, e logo já fomos assolados pela escassez de leitos e até de covas. O sentimento de pertencimento a esse grupo que, das mais variadas formas, batalhava em uma guerra que não escolhemos travar, fez com que aprendesse a ter uma espécie de amor por todos os outros como nunca havia sentido antes, uma cumplicidade como um riso sem graça, tímido, quente, cansado e asfixiado no canto do rosto. Cada raro momento de otimismo, assim como cada uma das grandes infelicidades, era de todos nós.


No dia quatro de junho de 2021, senti que, pela primeira vez, estava perdendo o privilégio da distância, cada vez mais incomum nesses tempos de pandemia. Meu tio, com o qual eu e grande parte da minha família havíamos tido contato, obteve a confirmação de ter contraído o vírus da COVID-19. Imediatamente, todos entramos em um estado de alerta. No dia seguinte, a sensação quente, de cansaço e de dificuldade de respirar já não era restrita àquele riso sem graça de cumplicidade pelos que vivenciávamos, e sim já tomava conta de todo o meu corpo como sintomas de que do vírus que, a esse ponto, já me afetava profundamente. Na Unidade Básica de Saúde de meu bairro, obtive a confirmação de que entrara para o contingente de pessoas comprometidas por essa doença. Minha mãe também testou positivo. Eram os nossos tempos do cólera. Nós duas, isoladas em casa, com mais duas crianças tendo convido conosco, sentíamos a dor de a cada segundo poder tê-las contaminado. Com muito pesar relato que perdemos nossa querida Alice pouco tempo depois, a qual também havia sido infectada e que hoje, além da dedicatória deste texto, ocupa os espaços mais especiais em nossas vidas.


Essa experiência nos impactou incisivamente. Ao contrário do que pensava Márquez, não “tínhamos vividos juntos o suficiente para perceber que o amor era amor em qualquer tempo e em qualquer parte” (MÁRQUEZ, 1985). A verdade é que nem era preciso. Nunca há tempo suficiente para que percebamos que, em todas as suas faces e versões, o amor é somente amor. Para nós, ele se apresentava como pânico. O amor que eu e minha mãe sentimos por nossa família fez com que temêssemos a possibilidade de mais algum adoecimento entre nós, enquanto as complicações mentais e físicas da COVID-19 tornaram minhas idas ao hospital quase que diárias. Atualmente, com o decorrer de alguns meses desde que passamos por esse momento, pontuo também outra divergência em relação à célebre narrativa de Gabriel Garcia Márquez: o amor não se torna mais denso quando se aproxima do fim da vida, e sim se torna cada vez maior pela possibilidade de seguir vivendo-o plenamente, o que ocorre verdadeiramente em qualquer parte e o tempo todo.


Após um mês, conseguimos recuperar o nosso estado de saúde, apesar de algumas sequelas terem persistido por um longo período de tempo. O temor em relação à possibilidade de contrair novamente esta doença nos afeta constantemente, e é preciso que continuemos tomando os devidos cuidados. Afinal, se tratando de uma doença grave e contagiosa, qualquer coisa que ocorrer com qualquer um de nós certamente contribuirá para continuar afetando os amores do mundo todo.


Referência:

MÁRQUEZ, Gabriel García. O amor nos tempos do cólera. 1ª edição. Rio de Janeiro: Record, 2019

[Narrativa colaborativa escrita após inúmeras reflexões e desabafos entre Nicole Eduarda Mello (nome fictício) e Matheus Henrique Cantelmo Albino, ambos estudantes. 29 de novembro de 2021].


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