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Domingo às avessas*


Fotografia de Nataniel Kaoru, acadêmico da UFSJ. Mais fotografias podem ser encontradas em seu instagram @natakaoru.jpeg.


Uma brisa quente me avança alma adentro.

Insinua-se através de cada poro,

uma suave força que desmancha todo o meio.

Mas, tão logo me atordoo, fujo dela, com receio:

no conforto morno de meu lar,

protegendo algum segredo contra

uma nova, e ainda secular, ordem de medo,

cresce, em meu peito, um burburinho,

algum tipo, uma espécie de vento:

prelúdio d’um incêndio,

um dilúvio.

O ar quente insinuava-se através da fresta da janela da cozinha. Movimento calmo e que pôs gradualmente a cortina branca de renda a dançar. O pano tecia movimentos ondulares, lentos, que ameaçavam ganhar força e sair voando - para dentro ou para fora da casa -, eles ousavam traçar os contornos improváveis do ar.

Era uma manhã de setembro, d’um desses dias em que todos os materiais se alongam, e, dilatados pelo calor, pela especificíssima excitação causada pelo especificíssimo mês (que já é quase fim e quase começo), todos eles derretem por dentro, em si mesmos. Dali a pouco se percebe que jamais havia sido manhã, e que o ar, na verdade, empurrava agressivamente a cortina. Dali a pouco parece ser fim de tarde, o exato momento em que pensamos a noite está sendo parida, mas ela nunca chega de verdade, e nunca chegamos a pensar aquilo mesmo. Dali a pouco, eternamente congelados numa armadilha líquida, os materiais inundados em si mesmos - e o tempo, o tempo feito a malha da cortina, impelida ao movimento. Lá em cima, ousando-se sob o formato minguante de uma lua, o tempo todo, uma palidez sôfrega e intimidada.

Ao fundo, a porta entreaberta da sala rangia. Um cachorro imenso transitava entre a sala de entrada e a garagem, atordoado, desmantelando, com sua ânsia intrinsecamente animal, a ordem pressuposta de uma casa. Um tremor crescia. Sim, surgia um tremor crescente - nas paredes, no piso, nos azulejos, na própria carne do animal e dos objetos. Poderia muito bem ser apenas uma sensação - e talvez fosse apenas uma sensação. Mas crescia, o tremor. Os automóveis na rua, o ar que se fazia vento, o cão em desespero. Preocupada com suas vizinhas, a casa tentava manter o tremor em seu íntimo, em segredo.

Não adiantava. Dali a pouco era a torneira do quintal. Gotas insistentes, o som crescente como uma nova maneira de contabilizar o tempo, destruindo-o. Água: a vantagem de se exibir líquida em toda a sua constituição. A avassaladora capacidade de inundar lares e continentes. Ou secar. Pingo por pingo. Gota a gota. Pungente ameaça.

Enquanto toda a casa se desalinhava em seu interior, o portão pesado de metal balançava para a frente e para trás, inconstante, sob influência de um vento cada vez mais forte e que clamava para si cada pedaço da construção, toda a sua matéria e todos os seus segredos. Uma atmosfera densa de perigo, o peso do próprio corpo-lar afundando a rua, a cidade.

O cão, num movimento transgressor, avançara pela primeira vez para a cozinha. Ao invés de explorar o ambiente novo, de botar as patas nas cadeiras e farejar, à mesa, os farelos dos restos dos pães de sal, ele sentou-se em frente à janela da cortina branca de renda e ficou ali, encarando aquela dança. Numa posição humana demais, o animal desvendava com seus grandes olhos pretos e circulares a forma do ar, como que podendo abocanhá-lo, numa brincadeira instintiva, a qualquer momento. Ainda, demonstrava extremo autocontrole. Desejando esse algo invisível, dedicando-se tanto à desconhecida agitação.

A casa, temerosa, assumia cada um desses movimentos, aprendendo, em seu íntimo, cada solavanco repentino e cada desordem rotineira. Como se pudesse, ela mesma, desprender-se de seus eixos e vigas para que fosse morar dentro da própria construção. Desnorteada feito o cão, ainda se guiava através de um tato impotente, através de uma sensação muito forte, farejando o próprio material com o qual havia sido construída e bebericando da água que rebentava, por vezes calma e por vezes louca, em seu encanamento. Faltava-lhe algo e ela sabia: como uma sensação de estar alheia à própria carne - não apenas da própria, mas de toda a carne. Ainda, era regida pelo imperativo de ser eternamente casa. Sua identidade inflexível. Estar afundando a cidade. Sob a luz apática e alaranjada do sol e sob uma lua de água - já não mais pálida e inofensiva - que ameaçava despencar, sentiu arranhar as próprias entranhas - o toque, o tempo.

À chegada súbita de um temporal, com ventos fortes demais e com a ameaça de uma larga carga d’água prestes a despencar, temeu pela própria vida, num recém-adquirido senso de autopercepção. Tinha uma janela escancarada e uma cortina branca rendada que esvoaçava em desespero, vítima dos ventos extremos. Tinha uma porta entreaberta e um animal sentado na cozinha, alheio à sua própria condição. Tinha uma torneira frouxa que pingava, que seria nada em comparação à chuva. Tinha um portão fraco nos eixos que se atordoava facilmente e gritava rangidos de susto com a possibilidade da queda.

Foi num átimo, na brevidade de um relâmpago, num momento de hesitação da própria tempestade, foi aí que, numa epifania vaziesca, sem perigo, sem ameaça, sem dança de rendas e sem rangidos e pingos, a casa percebeu que poderia, ela mesma, sumir. Bruscamente atordoada, despendeu inconscientemente uma quantidade de força capaz de cessar o gotejar, fechar a porta numa batida forte e cerrar a janela, arranhando seus trilhos. O cachorro deu um latido estridente.

Passado o instante, veio a tempestade: o laranja, em sua inanimada completude celestial, recuou, dando espaço ao que estava por vir em seguida. No nascimento do escuro, a lua desaguou.

*referência ao poema de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa “Não, não é cansaço”:

Não, não é cansaço...

É uma quantidade de desilusão

Que se me entranha na espécie de pensar,

É um domingo às avessas

Do sentimento,

Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...

É eu estar existindo

E também o mundo,

Com tudo aquilo que contém,

Com tudo aquilo que nele se desdobra

E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?

É uma sensação abstracta

Da vida concreta —

Qualquer coisa como um grito

Por dar,

Qualquer coisa como uma angústia

Por sofrer,

Ou por sofrer completamente,

Ou por sofrer como...

Sim, ou por sofrer como...

Isso mesmo, como...

Como quê?...

Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

(Ai, cegos que cantam na rua,

Que formidável realejo

Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.

Confesso: é cansaço!...


[João Vitor Pereira. Estudante, Santa Bárbara d'Oeste, interior de SP. 10 de setembro de 2020]

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