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Excertos de uma segunda-feira sem café

Atualizado: 2 de set. de 2020


Arte de Laura Domingues.


Acordo. Vou até a cozinha preparar as coisas para passar o café. Enquanto a água ferve, sento à mesa, planto bem um dos pés no chão e cruzo a perna. Curvo a espinha, finco o cotovelo no joelho e apoio o queixo na minha mão. Começo à entrar, quem sabe, numa espécie de transe sobre tudo o que têm acontecido nas nossas vidas nos últimos meses. Quando digo “nossas” é amplo assim mesmo. Tão amplo que abrange o mundo todo. Temos vivido um luto coletivo pela perda das nossas formas de andar a vida. Começo a pensar em como tem sido assim nas segundas-feiras como hoje. Tem sido mais difícil levantar, tomar coragem, me preparar pra sair lá fora. Lá, onde o medo é uma constante. Não só do vírus, mas do que vamos ver de dramas cotidianos e verdadeiras tragédias sociais. Eu sofro pela nossa comunidade, sofro por ver gente adoecer por não ter condições mínimas de vida. Pra gente já tá tão difícil, mas ir pra área e ver as várias famílias sem ao menos ter o direito à uma casa minimamente ok para passar a quarentena... nossa, é cortante.


Aliás, ir pra minha área tem sido das experiências mais angustiantes que tenho vivido. Me angustio ao ver as pessoas na rua sem usar a máscara, conversando umas com as outras bem de perto, as crianças andando de bicicleta. Parece que até consigo ver a nuvem de vírus entre elas. No bairro todo já são mais de 60 casos. Lá no posto, a gente graceja, tenta deixar mais leve a situação contando como as pessoas têm usado a máscara das formas mais curiosas possíveis: como se fossem um adereço para o pescoço ou uma cacharréu, ou ainda penduradas em uma das orelhas, ou simplesmente às pegam pelas alças como se fossem uma bolsinha, só pra não dizer que não saíram de casa sem leva-la.


Mas fazemos o que nos cabe e entendemos a dificuldade. Sempre que vejo situações assim, chego na unidade e mando uma mensagem pra alguém da família em questão. Aqui, apelidamos de zap educativo. Algumas pessoas nem me respondem, mas me sinto melhor quando falo e oriento. E penso que não é tão vago ou distante como parecem os montes de anúncios e cartazes que vemos pela cidade. Eu parto do real. Digo, “olha... eu te vi hoje e você estava com a máscara no pescoço, assim não vai funcionar, por favor se cuide, você é importante pra muita gente, precisamos passar por essa juntos.”. E assim, vamos tentando.


O posto tem ficado menos cheio com o correr dos dias. Mas não sinto vontade de estar lá mais. Antes disso tudo, as segundas me animavam, eu levava quitandas que faço no domingo e tomava café com as colegas. Café sempre muito doce porque quem fazia era a Marisa, nossa querida Marisa que trabalha lá há mais tempo que todas nós e agora está em casa, por ser grupo de risco. Hoje em dia, nos cumprimentamos apenas de longe e só.


Como eu queria não ter que ir. Lembro da minha filha e de como ela tinha crises apavorantes de asma quando era menor. Esse é o meu maior medo. Esse vírus já dá falta de ar, imagina no pulmão da minha filha que já tem asma? Tento pensar que tem muito tempo que ela não tem uma crise, mas o medo de trazer o bicho pra casa é cada dia maior. Me cuido o máximo que consigo. Deixo uma camisola pendurada no gancho da rede da varanda. Quando chego, pego ela, tiro toda a roupa de trabalho ainda na garagem e passo pela área do tanque, pra não entrar em casa com nada daquilo. Passo álcool em gel também, mas pra falar a verdade, não suporto mais o cheiro dele. Toda vez, sinto a náusea profunda que me vem do peito. Tenho tentado lavar com água e sabão ao invés de usá-lo, mas tudo que a gente faz... parece pouco e insuficiente.


Preciso falar com o médico lá do posto hoje. Tem um idoso acamado na minha área que não anda nada bem, as feridas têm tomado aquele pequeno corpo magro. Porém, a ideia de precisar falar com ele me causa ojeriza. Não só à mim, mas às minhas colegas também. A gente sempre se sentiu menos, sempre fomos tratadas como menos. Mas agora na pandemia, é desesperador o descaso com a gente, com a saúde da gente, com a segurança da gente.... Enquanto eles chegam todos encapotados (luva, gorro, avental, máscara e face shield), nós não temos mais que nossas próprias máscaras. Sim, as caseiras mesmo. E pensar que quem anda pelas ruas somos nós. Fico dividida demais com isso tudo. Queria poder só ficar em casa, em segurança. Mas eu adoro meu trabalho, como posso querer sair agora? Tenho sido salva diariamente, essa é a verdade. As vezes estou indo, já borocoxô voltar para o posto e vejo alguém que, mesmo com o sorriso tampado, me sorri com os olhos e agradece por eu estar fazendo as VDs. Isso me mantém.


Calefação. Ouço o barulho das últimas gotas de água comemorando no caneco. Comemorando por poderem evaporar. Corro até o fogão, olho aquele vapor gostoso e penso em como deve ser incrível simplesmente evaporar. A água secou toda. Miro o relógio e não dá tempo de ferver outra... hoje não vai ter café, preciso ir pro posto. Que a segunda seja leve.


[Lara Canaã, estudante de medicina da UFSJ, escreveu esta narrativa ficionada em 7 de julho de 2020]

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