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Fígado com jiló

Atualizado: 20 de jul. de 2020


Arte de Laura Domingues.


Fazer compras se tornou uma grande tarefa nessa quarentena, às vezes uma atividade quase homérica. Você tem que se planejar porque não dá pra ficar dando um pulinho ali no supermercado porque você esqueceu a cebola. A própria aventura de sair de casa por causa de uma mísera lata de leite condensado que parece fazer mais falta do que água no deserto no momento de desejo de um brigadeiro já se mostra muito burocrática. Irresponsável, até. Se já tem tanta gente na rua saindo à toa, a gente quer dar o exemplo e ficar em casa de verdade né? E toda essa situação modifica até o próprio desejo. Eu queria mesmo aquele brigadeiro? Não posso aprender a desejar o que já tenho aqui no armário da última compra? Já se passou muito desde o começo da pandemia, mas ao mesmo tempo é cedo pra arriscar dizer – mas eu arrisco. Eu acho que dá sim. Estamos aprendendo a viver com menos, e desejar menos. Se isso é bom ou ruim, não me pergunte. Mas tapioca de banana mata a vontade de doce sim no fim das contas. Agora, se tem uma coisa que tá difícil pro brasileiro eu me atrevo a dizer que é o tal do bater papo. Nessa aventura de ir ao mercado fazer compras é que isso ficou evidente pra mim. Enchendo o carrinho, tentando adivinhar tudo o que eu poderia querer comer nos próximos quinze dias e fazendo um esforço tremendo pra racionalizar a equação desejo/ grana, me peguei na fila do açougue pedindo bifes de fígado porque estavam bonitos (é uma concepção muito controversa, eu sei). O açougueiro atrás de sua máscara indagou brincando após o meu pedido por cinco bifes: “são cinco bifes ou cinco quilos?”. Não sei se é a precisão da brasileira de conversar fiado, ou da estudante de psicologia, ou os dois, logo dei trela pro senhor. “Cê tá doido? Cinco bifes desse aí já vira 15 pra mim, olha o meu tamanho!” E ele me perguntou se eu gostava de jiló, que a receita dele levava jiló... E que ele um dia chegou a comer mais de um quilo com um primo, ia fritando e comendo e tomando uma cervejinha. Eu disse que ia experimentar (mentira, não gosto de jiló). Mas a conversa fiada tava tão boa que eu até me esqueci por um instante que estávamos no meio de uma pandemia. Esqueci mas lembrei rápido. Eu ria, e ele não via a não ser pelos meus olhos por causa da máscara. Eu ria e lembrava porque eu estava achando aquilo tão bom, porque estava com saudade de conversar fiado com desconhecidos... Ah, é mesmo! Estamos no meio de uma pandemia.


[Ana Luíza Morais. Estudante de psicologia, UFSJ/PET Saúde – 11 de maio de 2020].

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