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Nesc

47. Indiferença sobre trilhos

Atualizado: 15 de set. de 2021




Pedimos expressamente que não achem natural

aquilo que acontece sempre!

Que nada seja tido por natural

neste tempo de confusão sangrenta,

de desordem ordenada, de arbitrariedade sistematizada,

de humanidade desumanizada,

para que nada disto se mantenha.

Bertolt BRECHT in: A exceção e a regra, 1930.


Costumo reservar os domingos de manhã para ligar para minha mãe, sentar na minha varandinha com meus bichos e ler um bom livro de literatura. Recentemente a conversa com a minha mãe em um domingo foi sobre o falecimento do meu avô na noite do sábado anterior. Dormia enquanto tentavam me avisar. Acordei com a notícia “Lidi, o vô morreu”. Eram seis da manhã quando minha mãe atendeu o telefone. Meu avô faleceu de covid-19.

Decidi tentar manter o mínimo de rotina naquele domingo. Peguei um livro, chamei meus bichos para acompanharem a leitura e tentei focar nas palavras de Oscar Wilde. As leituras dominicais são sempre atrapalhadas pelos barulhos da Maria Fumaça que passa nas manhãs por volta de dez horas e uns minutinhos. Os minutinhos são cerca de 8, 9 ou 10. É o tempo da Maria Fumaça sair da estação e passar em frente a minha casa. São três anos nessa rotina. A gente se acostuma com o barulho e cria até algum tipo de vínculo com os estranhos que olham pra gente na varandinha.

Em 2020 com a pandemia toda a rotina mudou. O silêncio que existia nos finais de semana sem a Maria Fumaça no início do isolamento era absurdamente estranho. O vírus ainda não havia chegado em São João del-Rei e as aulas estavam suspensas, as festas canceladas, deixei de ir a academia e ao teatro. Era um momento de medo, estranhamento e incertezas. Sinto que com o tempo vamos normalizando os absurdos e ficando indiferentes aos acontecimentos do mundo.

Hoje, 10 de junho, foram contabilizados 474.614 mortes no Brasil pelo covid-19. Hoje a Maria Fumaça passou 4 ou 5 vezes por aqui. Decidi evitar a minha varandinha, os passeios matutinos com a minha cachorra ou a olhar quando a Maria Fumaça passa por aqui com os vagões cheios. Daqui de casa se vê dentro do trem famílias com crianças e idosos, todos de máscaras dentro dos vagões. O branco das máscaras salta aos olhos de quem vê tantas pessoas juntas no passeio de maria fumaça. A indiferença das pessoas nem tanto.


[Lidiane Campos Villanacci. Estudante de Psicologia na UFSJ. Narrativa produzida na disciplina Memória, corpo e narrativa OBESC-NESC. Diário de junho de 2021].


Fotografia: Arquivo pessoal da autora

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