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Nesc

INEFÁVEL


Fotografia de Richard Neves, músico em Tiradentes, MG.


“Toda dor pode ser suportada se sobre ela puder ser contada uma história”

Hanna Arendt


Ontem meu marido pegou as correspondências na caixa do correio (raridade), entre algumas contas estava o jornalzinho de uma associação para a qual já contribuí há alguns anos: demonstrativos de gastos, anúncios de mortes por COVID, solicitação de contribuições, agradecimentos... Enquanto amassava o folheto para jogar no lixo, meus olhos pousaram na frase que coloquei como epígrafe deste texto, desamassei o papel, dobrei e coloquei na minha agenda. Ainda sem saber o que fazer com a frase, comecei a pensar qual a dor que se faz mais premente em ser contada neste momento tão insólito.

Há tanto o que ser dito, que fica difícil selecionar o que dizer: suicídios, violências, delírios, angústias, falta de ar... O medo do amanhã que se apresenta, ou ainda, o medo do amanhã não se apresentar. Me recordo de uma questão metódica colocada pelo filósofo Hume: Como sabemos que o sol vai nascer amanhã? Na verdade não sabemos, não há qualquer garantia de que o sol vai voltar amanhã, acreditamos nisso baseados em todos os dias que assistimos ao sol nascer. Trata-se, segundo Hume, de uma questão de costume, que se sobrepõe, inclusive, à razão.

Mas, e se de repente aparecesse um vírus de poder pandêmico e subvertesse nossos costumes? Um vírus capaz de tumultuar o cotidiano de parte da humanidade ao fechar escolas, separar famílias, prender pessoas em casa? Um vírus capaz de matar alguns, enquanto a outros sequer faz tossir? Parece filme de ficção científica: um filme que não sabemos quanto tempo vai durar, e no qual atuamos enquanto simultaneamente assistimos; aguardando os créditos e o acender das luzes para (quem deras) podermos nos levantar e ir embora do cinema.

É no meio desse cotidiano caótico que vou pinçar um acontecimento cru, que caberia bem em um filme de terror: a violência. Há alguns dias passei por uma situação inédita nos meus vinte anos como trabalhadora da saúde mental, uma situação que abalou minha segurança profissional e que, à revelia de ter se dado em plena pandemia, tem me feito questionar quais os limites da intenção de cuidar: fui agredida fisicamente por uma paciente.

Eu estava em uma Unidade Básica de Saúde que fica na zona rural, onde costumo atender quinzenalmente. Trata-se de um lugar tranquilo e bonito (é lá que ocorre anualmente a maior festa religiosa do município), que conta com três Agentes Comunitárias de Saúde bastante comprometidas com a população. Era uma quarta-feira de manhã, apesar de inverno não estava muito frio, fazia sol e o céu estava azul. A ACS Violeta me falou com receio sobre Raflesia, a paciente que eu iria atender. Não compartilhei do receio, pois já havia atendido esta paciente há alguns anos sem qualquer problema.

Crisântemo, marido de Raflesia, relatou que ela estava bem até há poucos dias, porém se endividou contando com o auxílio emergencial - que acabou não recebendo, desde então está com olhar perdido, alega ouvir vozes e não dorme. Ela tem trinta anos, é casada, cabeleireira (não exerce sua profissão), tem três filhos, dos quais nenhum mora com ela, devido a um histórico de maus tratos.

Quando olhei para Raflesia me surpreendi, pois me lembrava de uma moça bem apresentada e bonita, que dessa vez chegou de forma desleixada, acima do peso que a conheci, com dedos manchados por cigarro, (apesar das unhas grandes e cuidadosamente pintadas). Estávamos nós duas na sala, ela sentou-se na minha frente e lhe perguntei como sentia-se, então ela respondeu que ouvia vozes que a mandavam me matar e, em fração de segundos, pegou uma cadeira e jogou sobre minha cabeça, consegui segurar essa cadeira, mas não consegui impedir que ela se levantasse e se agarrasse em meus cabelos, arranhando meu rosto e pressionando a mesa que nos separava contra mim. Eu não tinha para onde fugir, pois estava do lado oposto da única porta da sala, gritei enquanto tentava me desvencilhar de Raflesia, até que Violeta, Margarida e Rosa (respectivamente ACS, enfermeira e técnica de enfermagem) entraram na sala com Crisântemo. Os quatro, com muito custo, conseguiram soltá-la dos meus cabelos, que saíam aos montes em suas mãos, caindo sobre a mesa e chão.

Fiquei petrificada, atônita, ainda não acreditando no que tinha acontecido, perguntei à Raflesia porquê ela fez isso, ao que ela me respondeu: “isso o quê? Não lembro de nada”, em seguida ela pediu desculpas, revirou os olhos e começou a escorrer pela cadeira, em um “desmaio” interrompido por Rosa e Crisântemo, que praticamente a carregaram para fora.

Telefonei para a polícia, que se recusou a ir até o local, me orientando a “fazer um exame de corpo delito”, agradeci enquanto me dava conta da minha fragilidade profissional e humana. Lavei meu rosto e meus óculos. Desejei não precisar trabalhar mais. O que ela queria dizer com isso? Não quero respostas, no momento não me vejo capaz de ajudar alguém que se apresenta de forma tão violenta diante de mim.


[Carla Cristina Rodrigues, Trabalhadora do SUS, atua como Psicóloga no ambulatório de Saúde Mental de um pequeno município do Sul de Minas Gerais. Agosto de 2020]

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