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Metamorfose

Fotografia de Nataniel Kaoru, acadêmico da UFSJ. Mais fotografias podem ser encontradas em seu instagram @natakaoru.jpeg.


É segunda e o relógio desperta às quatro da manhã. Uma emergência médica obriga a levar minha mãe a uma consulta na capital. Meu tio ofereceu uma carona para nós duas e em uma hora estará na porta. Levanto com dificuldade e decido tomar um banho. A ideia da viagem me deixa ansiosa por ter que encarar a estrada, pela saúde da minha mãe e pela pandemia. Não ponho o pé fora de casa já faz uns cinquenta dias, duramente aprendi que quarentena nem sempre significa quarenta, mas disse que a acompanharia na consulta. Dia anterior foi dia das mães e dia seguinte será aniversário dela, mas a vida segue acontecendo apesar das datas no calendário. Estúpida mania de controle. Deixo a água quente cair no rosto e na parede do boxe do banheiro vejo uma traça. Bem na quina ali um pequeno casulo que aguarda ser mariposa. Será que ela sabe que é chamada de bruxa, e que é meio desprezada comparada às borboletas? Gosto de bruxas, mulheres queimadas pelo incômodo de ser. Noto uma minúscula larva sair do corpo do casulo, minúscula tenta se agarrar à superfície e se mover len-ta-mente. Não sinto nojo ou medo, só observo. Mas talvez ela esteja lutando para se mover por medo de mim e da água quente que respingava nas paredes. Seria eu capaz de causar medo? Por um momento, passa por minha cabeça o que aconteceria se jogasse água e a arrancasse do azulejo. Me assusto com meu próprio sadismo e prefiro só observar e admirar o pequeno progresso da larva. Até me perguntar porque estaria eu atribuindo sentimentos a uma traça no meu banheiro às quatro e meia da manhã. É um fenômeno estranho de banhos. Saio apressada, arrumo minha mochila, engulo um café e desço as escadas com minha mãe que também parece preocupada com a viagem.

Já na estrada, mesmo com sono, me mantenho acordada para assistir ao nascer do sol. Me pergunto quanto mais irá demorar, mas já faz tanto tempo que não vejo nada da natureza acontecendo assim na frente dos meus olhos que prefiro insistir. É, teve o episódio da traça, mas ultimamente só consigo olhar uma fração do céu e sentir o sol em algumas horas sentadas no quintal. Quase cochilando, começa a surgir na janela lateral uma faixa rosada no horizonte, um rosa que se torna cada vez mais quente até explodir em um laranja. Me pergunto se era algum efeito do vidro da janela ou se aquele laranja era daquele jeito mesmo que chegava aos meus sentidos. É um sopro, é pouco, é suficiente. Enquanto o céu se coloria, volto meu olhar para a estrada e a vejo completamente enevoada pela neblina. Minha mãe diz baixinho: parece o mar. A quantidade de neblina me lembra de um episódio de quando criança, uma das vezes em que eu e meus pais viajávamos entre minha cidade e a capital em um feriado. Lembro que a serração estava muito densa e eu sentia muito medo. Meu pai dirigia, minha mãe aflita tentava desembaçar o vidro com um pano velho, eles brigavam, e eu no banco de trás deitada encolhida alternava entre olhos fechados e espiadas na cena, pensando os piores cenários possíveis. Com a lembrança seguro o choro, ponho meus fones de ouvido e aumento a música. Tem sido difícil tocar sentimentos como esse, tenho percebido a repetição do volume alto quando emergem momentos sensíveis como esse. Sentir e saber que se sente dói, nem sempre o refil de coragem está abastecido. Naquela vez, chegamos bem, a neblina passou. Dessa vez também, mas agora meu pai já nos abandonou, não tem mais briga no carro e eu escolhi enxergar o sol nascer até tudo passar. Aprendemos a navegar nesse mar. Passou.

Chegamos no consultório por volta das oito. O médico pôde atendê-la mais cedo. Fico na recepção assistindo ao noticiário da manhã depois de ter passado álcool em gel nas mãos umas três vezes, me certificar que encostava no mínimo de lugares possíveis e sentir a respiração pesada na máscara no rosto. Que praga é o noticiário da manhã, me pergunto realmente quem consegue engolir o café assistindo isso; devem ser por isso que colocam tanto açúcar. Entre números da pandemia, assassinatos e trânsito, a notícia que ecoa na minha cabeça é sobre uma ilha de Nova York, Hart Island, conhecida como a ilha dos mortos invisíveis. Por mais de um século ela tem sido berço para mais de um milhão de cadáveres não reclamados, gente que morre e ninguém procura, desconhecidos, John Does, enterrados em valas comuns. A repórter diz que esse lugar agora recebe vítimas da pandemia também. Meu ouvido confunde hart com heart, coração, e quão irônico seria esse nome. E trágico, continua sendo trágico. Lembro que já tive devaneios de como seria meu velório, quem apareceria, o que diriam, o que chorariam, mas jamais passou pela minha cabeça a ideia de um não–velório. Acho que na cabeça de ninguém. Por um momento quis chorar as mortes não choradas, mas coloco os fones e aumento a música de novo.

Minha mãe sai do consultório, seguro o impulso de abraçá-la, terá que fazer mais exames e aguardar aprovação do plano de saúde. Guardo minha indignação pela falta de respostas rápidas. Reencontramos meu tio e já pegamos a estrada de volta. Durmo todo o caminho um sono pesado. Chegamos em casa próximo do almoço, dá-lhe álcool em gel, desinfetante e lavação, depois volto a dormir e só acordo tarde da noite. Meio confusa e com o peito pesado me levanto, procuro o relógio, minha mãe já se acostou e decido tomar outro banho. Deixo a água quente cair no rosto de novo, não encontro a traça no boxe. Parece que nada aconteceu naquele dia. Não realizei nada da lista de tarefas. Parece que muito aconteceu naquele dia. Olhei o mundo lá fora e o mundo aqui dentro. Volto para o quarto, sinto um vento frio que vem de fora e na grade que cerca a janela vejo uma pequena mariposa. A encaro por alguns minutos ainda com a toalha enrolada no corpo e me permito. São dez da noite e choro.

[Núbia Vale Rodrigues. Estudante de Psicologia da UFSJ. Maio de 2020]

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