"Filho de Mãe. Mãe de Filho", de Fernando Campos Maia. Mais obras do artista podem ser encontradas no Facebook: Atelier Virtual - Fernando Campos Maia ou no Instagram: @fernandocamposmaia".
Quando criança, eu era uma aficionada por quadrinhos da Turma da Mônica, mantenho minha coleção até hoje, numa prateleira empoeirada sim, mas lá estão as histórias que eu consumi vorazmente durante toda minha infância. Recentemente, me recordei de uma tira que mostrava o dia de uma mulher adulta. Ela planejava todo o seu dia num bloquinho, trabalhava, ia à academia, ia ao salão de beleza, pagava as contas, ligava para a amiga, buscava a criança na escola, varria a sala, cozinhava, lia, dormia e se preparava para outro incrível dia amanhã. Minha pequena eu admirou muito essa mulher quando leu essa tira. Admirou sua capacidade de lidar com tudo e com todos em tão pouco tempo, moderna, eficiente, multitarefas. Mal sabia eu que contos de fadas não se resumem só a princesas da Disney.
Já passaram setenta dias de quarentena, perdi um pouco a conta, e cá estou eu planejando meu dia num bloquinho até chegar meia noite ou frustrada ou exausta. Enquanto tento preencher meus check lists das planilhas de tarefas da universidade, supervisão, pesquisa, reuniões, leituras atrasadas, lavar o cabelo, escutar podcast, fazer yoga, beber água, falar com os amigos, não pirar com o noticiário, me recordo do engano com aquele quadrinho. Basta um silêncio na madrugada, um olhar no espelho focado na olheira, uma respiração engasgada que eu me lembro do engano. Basta ver ou escutar outras mulheres que eu me lembro do engano.
Na quinta, segui transcrevendo entrevistas de mulheres refugiadas para uma pesquisa. O trecho era sobre a primeira frase que uma delas escutou ao chegar na Colômbia, “quanto você cobra?”. Interrompi a transcrição.
Na sexta, fiz uma ligação para um morador da cidade para saber como vai o cotidiano da pandemia. Ele segue trabalhando e diz que tem sido um tempo para conhecer mais a família. Ele faz esteira ouvindo Karnal, a mulher afastada do emprego limpa a casa, ela gosta muito de limpar, ele diz.
No sábado, a vizinha sentada na calçada debaixo da minha sacada conversava com outra sobre a escola dos filhos. Enquanto arruma a casa é sempre interrompida pela menina que tenta acompanhar a aula à distância que passa na tv, não está entendendo a matéria, mas a mãe diz que não sabe responder. Está estressada.
No domingo, a macarronada do almoço foi interrompida por barulhos estridentes e gritos distantes na rua entre um homem e uma mulher. Parou.
Na segunda, leio a reportagem sobre as novas estratégias de denúncia contra violência na pandemia. Agressor e vítima sob o mesmo teto. Baixe um aplicativo disfarçado, adicione um contato fantasma no celular, fale a palavra código na farmácia.
Na terça, minha mãe completaria trinta anos de matrimônio. Minha mãe conheceu meu pai aos treze, se casou aos dezoito, não pôde terminar os estudos, se dedicou a vida ao marido, à filha, à casa, adquiriu uma lista considerável de remédios e doenças, e no último semestre teve que assistir o marido deixar a casa enquanto a filha estudava fora do país. Sozinha. Hoje luta para recomeçar, luta na justiça, luta com as condições médicas que seguem se agravando, luta com as contas e o trabalho doméstico sempre invisibilizado, luta para que eu trace um caminho diferente do dela. Ela sempre me dá os mesmos conselhos que eu já decorei, mas eu sigo escutando até o final. Eu luto para lembrá-la que estamos lutando juntas. Na terça eu comprei um pedaço de bolo para celebrar renascimentos. Choramos.
Na quarta, recebo a carta de uma amiga. “Acho que tenho enchido meus dias para evitar um confronto mais duro com o isolamento. Tenho entendido que serão tempos de navegar em mares desconhecidos, de seguir o balanço do mar - alguns dias na crista, outros no vale das ondas. O mar por muito tempo foi caminho para o desconhecido, para a ressignificação das noções de viver. Talvez seja, então, tempo de ser remador novamente”. Curioso as analogias com o mar. Na carta que enviei para outro amigo escrevi “acho que no meio disso tudo a gente tenta se apegar em botes salva vidas enquanto esperamos o segundo sol chegar pra queimar o vírus e o presidente. Eu me apego nas pessoas e nas palavras, eu espero que você encontre seus botes também”.
Na quinta, escrevo esse texto debaixo da pequena faixa de sol que encontro no quintal. Esqueci de trazer água para aliviar o nó na garganta. O reflexo no computador revela minha olheira e meus ouvidos escutam minha mãe mexendo nas panelas. Mulheres na quarentena ainda são mulheres. Com grande frustração descobri que a mulher no quadrinho não existia, por mais que o Instagram e as propagandas de família margarina sigam me tentando provar o contrário. E com grande dor descobri que o tempo que gastava lendo aquela revistinha era provavelmente o mesmo tempo que leva para uma mulher ser estuprada ou morta no Brasil. As dores do crescimento.
Não sei se esse mar é tão desconhecido assim, mas sim minha amiga, seguimos remando e lançando botes para aquelas que se cansarem de remar. Com todas as vertigens e céus duvidosos deste mar agitado, seguiremos na esperança de contar para nossas crianças histórias melhores do que aquela tirinha, melhores do as que eu assisti em casa, melhores do que essas que encheram minha semana.
[Núbia Vale Rodrigues. Estudante de Psicologia da UFSJ. Junho de 2020]
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