Fotografia de Nataniel Kaoru, acadêmico da UFSJ. Mais fotografias podem ser encontradas em seu instagram @natakaoru.jpeg.
Meu nome é Ana Lúcia, sou enfermeira da Estratégia de Saúde da Família, de um pequeno município no Campo das Vertentes.
Desde o início da pandemia, muitas coisas vieram para mudar definitivamente nossa perspectiva de trabalho. Inicialmente havia o medo do desconhecido e depois o estresse de ter que lidar com muitas informações, que chegavam a todo instante por meio de protocolos e portarias. Muitas providências precisavam ser tomadas: era preciso criar um comitê; mudar o fluxo de atendimento das Unidades de Saúde e Postos de Atendimento da zona rural; orientar a população nas mídias locais e capacitar a equipe de trabalho. Foram dias corridos, enquanto acompanhávamos o crescimento do número de casos da Covid no país.
A população aderiu muito bem às medidas de prevenção e como sempre acontece em municípios pequenos, muitas pessoas se uniram para doação de tecidos, kits de higiene e também para confeccionar máscaras faciais para a população menos assistida. Enquanto isso, realizávamos programas semanais na rádio local, com orientações oportunas sobre a pandemia que, ainda parecia algo bem distante da nossa comunidade. Saímos às ruas, orientamos as pessoas nas filas dos bancos e locais de maior aglomeração, entregamos as máscaras doadas, iniciamos as barreiras sanitárias, orientamos todos os comerciantes formais e informais do município sobre o Programa Minas Consciente.
Era uma agenda cheia de atividades de prevenção e orientação contra o novo coronavírus. Apesar do decreto municipal de obrigatoriedade da máscara facial, não houve adesão total da população, assim como os moradores continuaram recebendo visitantes de outros locais com transmissão comunitária, realizando festas clandestinas e encontros religiosos. A todo instante recebíamos denúncias, mas pouco podíamos fazer a respeito.
Havia um sentimento de solidariedade e de respeito ao trabalho da equipe de saúde. Estávamos aparentemente prontos para receber os primeiros casos.
Recentemente tivemos que lidar com o primeiro caso positivo e com o primeiro óbito. Em poucas semanas tínhamos muitos notificados e alguns óbitos, de pacientes com outras graves comorbidades.
A partir deste momento, as pressões sobre os funcionários aumentaram muito. Elas partiram de todos os lados! Começaram a questionar os boletins, os números de notificados e as condutas dos profissionais da saúde. A página do Facebook da Secretaria de Saúde virou alvo de críticas com muitos questionamentos sobre a validação dos testes rápidos. A equipe responsável pela barreira sanitária virou motivo de chacota, uma vez que carros de outros municípios continuavam a circular pela cidade.
Dentro da Unidade Básica de Saúde também ocorreram algumas discussões sobre o protocolo e sobre os testes rápidos. Os enfermeiros não tinham muita participação nas decisões, uma vez que a médica responsável era quem dava o diagnóstico final, muitas vezes contrariando os protocolos do próprio Ministério da Saúde. Funcionários que ousaram questionar a conduta da testagem foram demitidos ou sofreram assédio moral.
O clima entre a equipe ficou tenso, com os funcionários desmotivados e amedrontados. A equipe estava perdendo o seu protagonismo!
Algumas pessoas, assim como eu, por serem do grupo de risco, optaram pelo trabalho remoto. O que antes parecia ser um privilégio, por não ter um horário definido, foi se tornando um pesadelo. Como não estamos familiarizados com este modelo de trabalho existe aquele sentimento estranho de ter abandonado o barco no pior momento da pandemia. Já tive várias crises de choro e vontade de jogar o meu celular no lixo, apenas para não ouvi-lo tocar. Tenho insônia constantemente e já senti quase todos os sintomas da Covid.
Nos últimos dias percebi que tenho vivido a pandemia 24 horas por dia. Durmo e levanto com ela todos os dias, pois eu levei o meu trabalho para dentro da minha casa. Ela está nas minhas relações com as pessoas e na forma como eu reajo a elas. Sejam parentes ou pacientes!
Resolvi procurar ajuda. Atualmente tenho feito exércícios de relaxamento, melhorei a minha alimentação e comecei com aulas de zumba pela internet. Apenas nestes momentos, eu me dou ao luxo de silenciar o meu celular...
[Ana Lúcia, enfermeira da Estratégia de Saúde da Família]
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