Meu nome é Júlia Lage, tenho 27 anos e estou no segundo ano de residência de Cirurgia Geral no Hospital público de Belo Horizonte. Quando foi noticiada a chegada da pandemia no Brasil, eu tinha contato somente com os casos do meu departamento que é o de Cirurgia Geral. Era como se eu tivesse entrado nas bordas de um furacão enorme, mas sem contato com o seu centro. Eu tinha ciência do que estava acontecendo, acompanhava as atualizações científicas sobre a profilaxia, as formas de intervenção e o andamento da produção de vacinas para o Covid-19, contudo, como eu já disse, eu estava na borda e não no centro daquele caos.
Em um relance eu fui empurrada da borda desse furacão que me cercava… e comecei a entrar no centro dele! Os casos foram se agravando, as pessoas iam se descuidando e justificando com base em fake news que ameaçavam a ciência e contradiziam todos os protocolos defendidos pelos profissionais da saúde que estavam dedicando sua vida ao conhecimento sobre vírus e ao desenvolvimento de estratégias para combatê-lo. Durante os meus intervalos, entre um atendimento e outro, entre uma mensagem no whatsapp e outra, entre uma chamada e de vídeo e outra, meus colegas da linha de frente intensificaram os relatos: inicialmente sobre o quanto era fatal para pacientes idosos; depois sobre pacientes de meia idade que não sobrevivam mesmo amparados por respiradores e, por fim, sobre a insuficiência de respiradores tanto na rede pública, quanto na rede privada de saúde.
“Pandemia”, “quarentena”, “COVID-19” já tinham se tornado a pauta do meu café da manhã, dos meus finais de semana, das minhas noites mal dormidas. De tanto ouvir relatos, estudar sobre a doença, me informar sobre o quadro do país, eu pensava estar sentindo um pouco do que meus companheiros de profissão que atuam diretamente no enfrentamento do vírus sentiam, mas, acredito que uma amostra dessa dor só foi experimentada por mim em um dia marcante… em uma manhã de sexta-feira, fui trabalhar como de costume, o Hospital estava com todos os seus 11 andares preenchidos de pacientes da covid-19, com exceção do 6º andar que é a enfermaria da pediatria. Todos os médicos estavam ocupados, andavam pelos corredores com olhares pesados que davam indícios de ansiedade e preocupação. Um colega de trabalho me pediu para pegar o acesso central em uma paciente para infundir medicação. Era uma paciente jovem, com câncer descoberto recentemente e covid-19. A pressão dela estava caindo, era preciso achar uma veia importante que fica próxima ao coração o mais rápido possível. O procedimento era delicado e de urgência e, por isso, era necessário ser realizado por um médico.
E assim eu fui… entrei no quarto e avistei a paciente entubada com a pressão e saturação muito baixa. Respirei fundo, me locomovi até o mais próximo possível dela e comecei a realizar o procedimento. Estava nervosa pois, de certa forma, a vida dela estava em minhas mãos naquele momento. Tentando manter a calma, usei meus instrumentos médicos e consegui pegar o acesso rápido para infundir a medicação na paciente. Respirei aliviada, isso indicaria que a pressão dela iria voltar ao normal e ela ficaria estável. Segui minha rotina e fui realizar um acesso a outro paciente. Mais tarde, após pegar o acesso desse segundo paciente, aquele colega chegou até mim para dar a notícia: a mulher que eu achava que tinha salvado a vida antes, não resistiu, a pressão continuou abaixando e ela teve uma parada cardíaca.
As palavras do meu colega invadiram minha mente e eu não soube muito bem como reagir. Fiquei alguns dias lembrando daquela mulher, de certa forma eu me identificava: ela era tão jovem e apesar do câncer descoberto recentemente, ela estava saudável. No fundo, eu acreditava que se não fosse por toda debilitação causada pela infecção pelo vírus, o procedimento teria sido suficiente para deixá-la estável. E essa foi a primeira vez que pude tocar no centro do furacão que alguns dos meus colegas de profissão estão imersos diariamente. Se cuidem e cuidem dos outros também!
Narrativa colaborativa entre uma residente de cirurgia geral, Júlia Lage (nome fictício) e as estudantes de psicologia Giulia Christina Fernandes e Ianka Corrêa Ricaldoni. A narrativa parte do relato de Júlia e adições foram feitas para tornar a narrativa mais subjetiva [abril de 2021, UFSJ].
Fotografia por Cássia Batista
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