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O mundo dos adultos

Atualizado: 20 de jul. de 2020


"Que rei sou eu?", de Fernando Campos Maia. Mais obras do artista podem ser encontradas no Facebook: Atelier Virtual - Fernando Campos Maia ou no Instagram: @fernandocamposmaia".


Não tem sido fácil abrir os olhos ao acordar. Os sonhos noturnos têm sido mais prazerosos que o clarear matinal, mesmo quando esses são permeados de terror e assombrações que, inconscientemente, são reveladores de conteúdos psíquicos de nós mesmos. De toda forma, o onírico consegue ser menos terrível do que a realidade atual. É, mas não dá para viver nas nuvens o tempo todo. Há de se firmar o pé no chão e erguer as pálpebras para a vida fora de nós e de nossos desejos.


Tenho me recordado muito do período da infância nesses últimos dias. Acredito que seja porque amava sonhar nesse época. Quando eu era criança, criava mundos desconhecidos apenas dentro de uma caixa de sapato. Tudo parecia absolutamente possível. Você podia criar o “era uma vez...” quantas vezes for, modificando a história para tornar o enredo mais encantador e possibilitar que todos pudessem ter seu espaço ali. Brinquedos, colegas, ursinhos de pelúcia, casas, castelos, animais. Ai como era bom!


Enquanto eu gastava, prazerosamente, o meu tempo inventando formas de viver livremente em terras distantes, percebia que a vida dos adultos não aceitava muita invenção e magia. Achava muito estranho os adultos não brincar. Eu até tentava incluir eles nas minhas brincadeiras, mas sempre me diziam que estavam com compromissos importantes e sérios. Bem, nunca entendi muito do que se tratava isso tudo. Suspeitei que talvez o trabalho, de que eles tanto falavam, era, na verdade, uma espécie de brincadeira secreta. Só assim para explicar porque estavam sempre tão atrasados e ocupados.


Comecei a observar os adultos para descobrir rastros que possibilitassem encontrar o caminho secreto do trabalho, onde acreditava ser o esconderijo do paraíso do mundo dos adultos. O cansaço e exaustão que com que chegavam em casa me fazia suspeitar que haviam brincado o dia todo. Todos os dias de noite, observava os hábitos dos adultos para ver se, entre as estrelinhas das conversas ou na rotina sistemática que eles possuíam, conseguia capturar uma pista sobre os brinquedos secretos.


Após reclamarem do tanto que trabalharam (ou brincaram), normalmente iam até a cozinha, abriam uma lata de refrigerante amarelo com muita espuma, colocavam em um copo e iam se sentar ao sofá. Passavam horas assistindo aos noticiários. Parecia ser um programa um pouco estranho, na verdade. Falava-se muito em violências, polícias e partidos políticos. Os adultos se exaltavam muito em defesa desses partidos (na verdade eu nem tinha noção do que significava esse tanto de sigla que os jornalistas pronunciavam, só sei que as pessoas grandes se importavam muito com eles). Quando os adultos iam para a cama, em vez de ler histórias de aventuras para relaxarem, como nós crianças fazemos, só conseguiam pegar no sono após tomarem uma pílula branca que encontrava-se dentro de uma caixa com rótulo preto.


Eu tinha muita curiosidade de compreender porque os adultos tinham certos rituais. Achava muito enigmático. Após anos e anos andando e observando nos vãos das portas, sutilmente, a vida dos adultos, não conseguia encontrar nenhum rastro, mínimo se quer, do esconderijo onde eles costumavam brincar colocando o nome de trabalho.


Continuei, arduamente, a observar o cotidiano os adultos. Percebi que, para trabalhar (ainda estava tentando descobrir do que se tratava esse treco de trabalho), os adultos ganhavam em troca um papel que elas chamavam de dinheiro. E para ganhar muito desses papeis, elas precisavam entrar numa competição com seus colegas. Não me parecia uma luta justa e honesta. Analisando melhor os adultos, comecei a reparar que havia algumas pessoas com mais oportunidades que outras, que os adultos eram divididos em classes e categorias. Alguns eram mais “bem vistos” e valorizados. Uns por causa da sua cor de pele, outros por causa do seu gênero e outros por terem nascido em certos bairros da cidade.


O mundo dos homens grandes, não era como nos meus contos de criança, em que todos os amigos estavam juntos, brincando e apoiando de forma conjunta. Nós não almejávamos ser pessoas importantes com méritos do mundo público. Não queríamos ganhar de ninguém. Sim, nós também jogávamos e haviam campeões, mas não era disso que se tratava o nosso jogo. O que estava em jogo no nosso jogo da infância era estar com as pessoas. Todos encontravam-se no mesmo campo juntos, para que, assim que terminássemos de jogar, fôssemos tomar picolé e rir. Os adultos, em contrapartida, selecionam demais, prescreviam demais, excluiam outras pessoas do jogo deles. Não achava isso legal.


Quando minha infância foi se perdendo ao longo das passagens dos anos, descobri que o mundo dos adultos é, na verdade, bem cruel. Nele, algumas vidas importam mais que outras. E ao final de tudo, não encontrei nenhum sinal de paraíso dos brinquedos escondidos. O mundo dos adultos era realmente como eu o via na infância. O mundo dos adultos tornou-se, portanto, menos enigmático para mim, mas não tão legal como eu achava que poderia ser. Eu sinto falta do mundo da infância.


[Daniela Marras. Estudante de Psicologia da UFSJ. Junho de 2020]

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