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Um estranho de quarentena


Fotografia de Nataniel Kaoru, acadêmico da UFSJ. Mais fotografias podem ser encontradas em seu instagram @natakaoru.jpeg.


Teto branco, teto preto. Quarto claro, quarto escuro. Dia, noite. Esse é o peso da marcação do tempo da vida quarentenada. Têm sido dias vividos pelas metades, pelos quartos até. Quartos frios iluminados pela luz que entra pela fresta da cortina e que reflete nos cálices da prateleira e nos cacos pelo chão. Meu espelho pendurado na parede quebrou há muitos dias e noites atrás, num susto no meio da madrugada. Fui obrigada a acender a luz rapidamente e encarar o estrago. A vista doeu. Entre o caco e o caos via refletida uma imagem distorcida e fragmentada de uma estranha. Um pedaço de um braço, um rastro de um rosto, uma parte de uma perna, uma parcela de um peito. Me aproximei tentando reconhecê-la e evitando não sangrar meus pés. Não funcionou. Meu pé sangrou e meu olhar desbaratinou. Não sei o que doeu mais, meu pé ou meu reflexo. Encarei aquela imagem por dias e noites, me demorei, me familiarizei com os pedaços faltando, conversamos, nos tocamos. Exercício de re-conhecimento. Até o momento em que ela me deixou recolher os cacos. Cuidadosamente os coloquei envoltos em um jornal com uma manchete antiga e simplória que nem imaginava um mundo tão desordenado.

Aproveitei para uma grande faxina, afastei as cortinas, abri armários, revirei caixas, desafoguei gavetas. Reencontrei cartas, fotos e frascos de esperança. E do lado dos cálices na prateleira, avistei uma máscara. Não, não era mais uma máscara de pano, era um molde de gesso do meu rosto. O fiz há alguns anos em uma oficina, discutíamos sobre as máscaras de cultos, guerras, mortuárias, as de justiça, de teatro. Indagamos sobre as máscaras cotidianas. Questionamos se a função de uma máscara seria mostrar ou esconder? Mostrar escondendo foi a conclusão. E se o mostrado fosse nós mesmos? Criamos então a máscara do nosso próprio rosto. Me lembro das faixas molhadas com gesso sendo depositadas na minha face e o endurecimento com o tempo. Era pesado, a respiração era curta, não podia me mover, gargalhar, enxergar, falar. Mas depois de alguns instantes o peso foi retirado e lá estava o meu rosto. Tão estranho, parecia sem vida. Seria mesmo eu? Não tinha minhas rugas, minhas pintas, os olhos gigantes, o sorriso, as espinhas, as sobrancelhas grossas. Mas aquela era minha forma. Tão estranha quanto aquela figura fragmentada do espelho. O olhar se acostuma ao que é rotineiro.

Segurei a máscara nas mãos torcendo para que não se quebrasse como o vidro. Fui para a frente do espelho, ou do que restava dele e coloquei a máscara. O estranhamento me fez fechar os olhos e minhas lembranças me levaram para dias melhores e sonhos acumulando pó. E que alívio perceber um sorriso no meu rosto sendo formado por trás da máscara, que alívio perceber que eu não tinha endurecido depois de todo esse tempo. Reabri os olhos como alguém que acorda de um sonho. Retirei o gesso e troquei olhares com a velha conhecida. Consegui enxergar meu reflexo entre as ausências, as fronteiras do meu corpo, meus traços e marcas que desenham o mapa da minha história. A autora, prazer. Desde então, acolho as visitas da escuridão e da claridade sem temor, as manifestações do fluxo do tempo, sei que sou meu abrigo.

[Núbia Vale Rodrigues, estudante de Psicologia da UFSJ, 20 de junho de 2020]

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